O americano Benjamin Moser tornou-se conhecido na cena cultural do Brasil em 2009, graças à biografia Clarice, (editora Cosac Naify), trabalho monumental de pesquisa sobre a escritora Clarice Lispector. Nos últimos anos, o biógrafo e ensaísta americano de 39 anos vem se revelando uma espécie de consciência crítica do Brasil e de sua cultura, desafiando tabus que nem mesmo intelectuais do país parecem dispostos a enfrentar. Para ele, por exemplo, a obra de Oscar Niemeyer tem excesso de concreto e escassez de verde – e o próprio arquiteto merece reprovação por seu alinhamento a ditadores. Em outra frente, Moser identifica preconceito na atitude de estudiosos que relutam em tratar abertamente como homossexuais autores canônicos como Mário de Andrade e Lúcio Cardoso.
Nesta entrevista, concedida por telefone em português fluente no último dia 15, Moser afirma que passa justamente pelo fortalecimento de uma intelectualidade crítica e vibrante a possibilidade de saída para a atual crise de representatividade da sociedade com seus políticos. Ele advoga contra o modelo de desenvolvimento baseado na exploração desenfreada de recursos naturais, no desprezo pelas manifestações genuinamente nacionais e na busca por referências importadas, venham elas de Paris ou de Miami. Muitas dessas posições estão expressas na coleção de ensaios Autoimperialismo (editora Crítica), lançada neste ano. Ativista de suas causas, em 2014 ele publicou o e-book Cemitério da esperança (Cesárea) – sobre o urbanismo no Brasil – ao preço simbólico de R$ 3. A renda foi revertida para o movimento Ocupe Estelita, que se opõe à construção de torres no cais do Recife.
Radicado na Holanda, o escritor está de volta ao Brasil. Na sexta-feira e neste sábado, participaria da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro. Em 7 de julho, vem ao Rio Grande do Sul para dar palestra na Feira do Livro de Canoas.
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Os brasileiros estão decepcionados com seus políticos, e parece haver uma crise de representação, com escândalos em diferentes instâncias de poder. Você já declarou que a história do Brasil alterna momentos de euforia com depressões. Parece que estamos entrando em mais uma depressão, não?
É uma tragédia que se repetiu justamente porque todo mundo sempre acha que essas coisas são novas. Não são. O Brasil sempre teve uma geração de euforia – bossa nova, Pelé, João Gilberto, Brasília – e depois vem a conta. O modelo (de desenvolvimento) nunca mudou, a corrupção nunca mudou. Os jovens contra a corrupção, em vez de ficarem no botequim reclamando, deveriam entrar na política, dar a cara e se candidatar, por exemplo, para vereador. Mas as pessoas ficam afastadas. Há um conceito arquitetônico que serve como metáfora. Quando se tem a ideia de que um parque público é perigoso, as pessoas não entram. O que acontece é que vira de fato perigoso, porque quem entra é só vagabundo, criminoso, traficante. Na política, é a mesma coisa. Pela má reputação dos políticos, muita gente que deveria estar nessa luta não entra. Quem fica? É só Eduardo Cunha, Bolsonaro, essa gente repreensível que cava um buraco cada vez mais fundo. Sou absolutamente contra essa palhaçada que presenciamos agora no impeachment da Dilma. Não sou burro, vejo os defeitos da Dilma. Mas ela era uma presidente eleita democraticamente e foi afastada por um motivo que não entendemos direito e foi substituída por um governo não eleito, e de direita. Tem esse debate entre aspas, de Facebook, se foi golpe ou não, mas não quero entrar nisso.
O debate político nas ruas e nas redes sociais é muito polarizado. Parece que as vozes moderadas são silenciadas pelos gritos de quem está nos extremos.
Nossa, se eu te contasse quanta gente bloqueei no meu Facebook! Políticos ruins todo o mundo tem, não é uma especialidade do Brasil. O que acontece no Brasil é que tem um governo não eleito. Estamos vendo a qualidade do povo que eles trouxeram para o ministério. É vergonhoso. Pelo mundo, nunca vi um jornalista, comentarista ou historiador internacional que entende de Brasil apoiar (o impeachment). Tínhamos muita esperança de o Brasil ser líder no mundo, como no período depois da ditadura, com Fernando Henrique e também Lula. Essa esperança foi frustrada. Na minha opinião, isso ocorreu porque o modelo de desenvolvimento nunca mudou no Brasil: sempre foi vender coisas como açúcar para trazer a modernidade que vamos comprar em Miami ou em Paris. O consumismo no Brasil é uma coisa nojenta. Os Estados Unidos, que são o país mais materialista do mundo, ficam bem atrás do materialismo brasileiro. A política nunca enunciou um valor maior do que comprar uma coisa e tentar trazê-la por Guarulhos sem que a alfândega se dê conta. Por isso sou tão defensor do Ocupe Estelita e de todos os movimentos que estão defendendo outro modelo que não seja só explorar, demolir, apagar, mas lembrar, estudar e pensar como o Brasil poderia ser. Felizmente, acho que tem muita gente pensando nessas questões de uma forma muito urgente.
O que seria necessário para sair da crise?
A única saída para o Brasil é desenvolver intelectuais muito sérios. É a única saída para qualquer país. O intelectual precisa ter um papel essencial no Brasil agora. É a única forma de educar as pessoas, de pensar, de encontrar novas maneiras de ver. O brasileiro é como uma pessoa que fica se olhando no espelho tanto tempo e acaba se achando horrível. Ele tem de aprender a olhar de forma diferente. É um trabalho intelectual, e até espiritual, de formular o que a gente quer. Não é esse modernismo importado. Mas como podemos ser brasileiros de uma forma positiva, dando valor ao nosso povo, nossa história, nossos escritores, nossos artistas. Isso tem que vir do próprio brasileiro, não pode vir de fora. Há um aspecto sério da questão intelectual no Brasil que vi muito nos estudos literários quando estava pesquisando para escrever a biografia da Clarice Lispector. Seja em Minas Gerais, no Espírito Santo ou em São Paulo, a maneira de escrever uma tese no Brasil é citar autoridades estrangeiras que não têm nada a ver com Clarice. Em geral, são nomes da teoria francesa. Isso deve vir dos professores, porque o aluno não inventa isso. Você não pode falar: "Eu, Fulano de Tal, de Porto Alegre, penso isso ou aquilo". Sempre tem que dizer: "Segundo Georges Bataille ou Roland Barthes...". Ou seja, você, um brasileiro pensando sobre uma escritora brasileira, sempre tem que citar autoridades estrangeiras. As pessoas querem fingir ser inteligentes citando alguma coisa francesa do século 17. Mas você tem que conquistar essa cultura pelo trabalho intelectual próprio. Se eu fosse professor no Rio Grande do Sul ou onde quer que seja, seria o primeiro conselho que eu daria aos alunos: você tem que ler e aprender a olhar por você. Olhe para a sua cidade, seu país. Isso é muito mais difícil do que as pessoas acham. É uma luta de quase toda uma vida.
Não é irônico que justamente um estrangeiro, como você, esteja chamando a atenção dos brasileiros para esse aspecto?
Eu só queria ser lido em função do que escrevo e nunca em função do passaporte que tenho.
Brasília, centro dos três poderes, parece uma ilha à parte dentro do país. Embora haja protestos populares lá, é certo que seriam muito mais numerosos se a Capital fosse Rio ou São Paulo. Brasília protege os poderosos da vida real?
Isso foi feito propositalmente. A ideia de Brasília que Oscar Niemeyer endossou, embora não só ele, pois toda a elite do país queria isso de certa forma, era afastar o poder do Rio de Janeiro, a capital natural – não tem país com capital mais óbvia. A mudança é uma fantasia de ditadores. O governo militar da Argentina queria levar a capital para Viedma para tirar o poder de Buenos Aires. No Rio, no Palácio do Catete (sede do poder executivo brasileiro de 1897 a 1960), você tem que responder à multidão carioca, porque está em um bairro de classe média para baixo. Em Brasília não tem rua, literalmente. É para isolar o povo do poder. Citando Gilberto Freyre, é como tirar a senzala da casa grande. Até hoje é muito difícil chegar a Brasília. Conheço muitos brasileiros que nunca puseram os pés lá porque fica longe e é muito caro de chegar. Em Brasília, há uma ideia ambientalista, entre aspas, que era deixar uma área verde ao redor da capital oficial. Não é um parque, é só uma cinta verde. Atrás dela fica o povo, e os diplomatas e os ministérios ficam no centro, no plano piloto. Há milhões de habitantes nas cidades-satélites. Essa gente tem que atravessar tudo para chegar ao plano piloto, onde elas trabalham. Você vê a vontade do brasileiro poderoso de afastar a favela, o povo, a senzala. É uma maneira de não enxergar o que é o país, que tem um legado horrível de escravidão.
Niemeyer é quase unanimidade no Brasil, mas recebe críticas de alguns estudiosos, como você e o urbanista Jan Gehl. Por quê?
Acho que não há muitas unanimidades. Algumas merecem ser e outras não. Anos atrás, falei de Gilberto Freyre, que é quase endeusado em Pernambuco. Isso impede sobretudo as pessoas novas, que vão formar uma opinião própria, de enxergar o que realmente está atrás desse clichê que os grandes nomes viram. Niemeyer é uma pessoa que todo mundo concorda que é um grande nome, mas pouca gente estudou mesmo a obra dele. Isso chamou a minha atenção. As pessoas não leram as coisas que ele falava. Ou, se leram, não levaram a sério. Em Autoimperialismo, falo da afinidade dele com ditadores. É um assunto muito grave. Niemeyer foi admirador de Stálin, foi para a Argélia trabalhar em prol do ditador de lá. No país, há muitos arquitetos melhores do que o Niemeyer, mas ele ficou justamente pelos vínculos com o poder. Ele realmente corrompeu o pensamento brasileiro, não só em termos de arquitetura mas também em termos de política. Isso fica refletido na sua arquitetura, essa forma de apagar o passado do Brasil em nome de um pretenso país do futuro. O exemplo que adoro dar é o parque no Recife que ele criou (Parque Dona Lindu). O Brasil ficou conhecido desde o século 16 por ser um país verde, de árvores e florestas. Ele criou um parque que é só de cimento, não tem qualquer árvore. No calor de Pernambuco, é um parque para quem? É uma negação da própria terra do Brasil.
Porto Alegre está vivendo uma polêmica sobre o Cais do Porto parecida com a do movimento Ocupe Estelita. Há um grande debate sobre o que deve ser construído em sua orla. Como você vê essa luta pelo espaço urbano?
Acho que é vital. Dediquei Autoimperialismo ao Ocupe Estelita porque gosto deles e tenho meu vínculo com Pernambuco por causa da Clarice (ela morou em Recife na infância). Quando falamos em Recife, também falamos em Fortaleza, Salvador, Rio, Porto Alegre, todas as cidades que passam pela mesma coisa: uma espécie de privatização do espaço público sempre em nome do modernismo, do progresso, que é o grande espectro da vida brasileira. É a ideia de que o país tem que dar certo, ser moderno. São negócios milionários para os empreendedores, que são as mesmas pessoas admiráveis que quase acabaram com o país nos últimos anos, como a Odebrecht. O que eles fazem é construir uma infraestrutura privada com dinheiro público em espaço público. Não é só o pobre que fica castigado e marginalizado. Até as pessoas de classe média ficam com aluguéis muito altos e cada vez mais longe do centro da cidade. As lojas fecham, o pequeno comércio some porque vai tudo para o shopping. É um processo deliberado. Então, acho importante chamar a atenção para esses movimentos (de resistência), para que se comuniquem. Gosto do Ocupe Estelita porque eles fizeram um vídeo maravilhoso no YouTube explicando essas coisas com palavras muito simples: o que acontece quando você constrói uma estrada que vai de um shopping a um subúrbio de condomínios, por onde passa isso, o efeito no ambiente e nas comunidades, onde vai parar essa gente.
A sua biografia de Clarice Lispector e a antologia Todos os contos não apenas ajudaram a divulgar a obra dela entre os falantes de inglês, mas renovaram o interesse no Brasil. Em geral, os brasileiros esperam um selo de qualidade conferido por um estrangeiro?
Em muitos casos, sim, mas não necessariamente (nesse caso). A Clarice sempre foi muito querida no Brasil, não era um nome que eu tirei de um baú. Ela estava sempre presente. Acho que o sucesso das minhas publicações no Brasil tem a ver com esse carinho. Os brasileiros que já eram fãs ficaram orgulhosos em vê-la fazer essa carreira esplendorosa pelo mundo. É mais isso do que um complexo de inferioridade. Com Todos os contos, que saiu agora, foi outra história. Seus contos estavam publicados no Brasil (em edições separadas). A edição que é diferente. O que gosto nesse volume é que, agora, você percebe toda a atividade intelectual e artística em um livro só. Isso é novo.
No Brasil, faltam biografias. A legislação dificultava, mas agora a lei permite biografias não autorizadas. Na sua opinião, por que o Brasil tem relativamente poucas biografias de suas grandes figuras?
Porque o Brasil foi uma ditadura, e isso se sente em tudo. Essa é uma luta contínua. Recentemente, um deputado propôs uma lei para tornar ilegal a gravação de pessoas sem o consentimento delas. Isso é para proteger essa gente que não quer ficar na cadeia por conta da Lava-Jato. Você tem uma série de leis e práticas culturais que impedem as pessoas de pesquisar e contar as verdades do país. No ano passado, aprendemos que Mário de Andrade era gay. Todo mundo sabia que ele era gay, mas não se falava disso até 2015, quando descobriram uma carta. Como você vai pesquisar sobre Mário de Andrade se não pode falar de um aspecto tão essencial para a vida dele? Outro exemplo famoso é o de Guimarães Rosa: a filha dele não quer que ninguém faça uma biografia porque ele tinha duas mulheres.
Algumas informações contidas na biografia de Clarice foram consideradas "corajosas". Mas, na sua opinião, eram informações que deveriam estar em qualquer biografia séria.
Acha-se corajoso dizer que Lúcio Cardoso era gay ou que Mário de Andrade também era. Ou que a mãe da Clarice tinha sido violentada na Ucrânia, algo que várias pessoas sabiam e ninguém contava. Mas os motivos familiares são diferentes dos motivos dos pesquisadores. Quando falo de Clarice Lispector, falo com 100% de carinho, amor e respeito. Mas, se você quiser ser levado a sério, não pode dizer que tudo é maravilhoso. Minha credibilidade como escritor e crítico cultural depende de falar do bem e também do mal. Muita gente está criticando tudo no Brasil, o que é outro perigo: não achar nada bom. Por isso, falo do Ocupe Estelita e das coisas que são positivas. É um trabalho intelectual e também político.
Voltando à questão de Mário de Andrade e Lúcio Cardoso: esse encobrimento da homossexualidade é uma forma de preconceito?
Absolutamente. As pessoas achavam que ser gay era uma coisa vergonhosa e que, se você contasse isso, a imagem do grande fundador da cultura brasileira que é Mário de Andrade, por exemplo, ficaria diminuída. Por isso faço questão de ser muito gay no Brasil, muito mais do que eu sou. Porque os gays no Brasil são assassinados diariamente, são discriminados, sofrem muito esse preconceito fisicamente, não só moralmente. Então, quem é gay – e também quem não é – tem a obrigação de dar a cara e falar: "Isso é comigo, não é uma abstração. Se você acha que estou sujando o nome da sua família, que diga na minha frente. Não fique no Congresso defendendo a família brasileira. Venha a mim e me conte isso". Mas daí as pessoas ficam quietinhas. Cada pessoa que se assume tem um efeito positivo. Não sei se é um efeito radical imediato, mas é muita gente pelo Brasil e pelo mundo que precisa desse apoio. Depois do que aconteceu em Orlando (o assassinato de 49 frequentadores de uma boate gay), você vê que a homofobia mata mesmo.
Como você avalia a reação ao atentado em Orlando? Parece que, na hora de analisar as causas, cada um puxa para seu lado ideológico.
Acho uma vergonha. Você viu a procuradora-geral da Flórida (Pam Bondi) chorando de emoção. Essa mulher é uma Bolsonaro da Flórida, uma pessoa que fez carreira atacando gays. Disseram que, se a gente pudesse se casar, seria o fim da decência da família americana. E agora essa senhora chega com lágrimas. Não duvido que ela esteja comovida, porque teria que ser um monstro para não se comover. E tem o Trump querendo bombardear ele nem sabe onde, porque tem ódio aos muçulmanos. O que não se diz o suficiente é que esse foi um ataque homofóbico, não um ataque islâmico. Não sou ativista por natureza. Sou um estudioso, uma pessoa quase monástica. Fico na minha casa com meus livros, escrevendo esses livros enormes. Mas esse trabalho me deu uma voz, seja no caso das biografias no Brasil, seja na defesa dos direitos dos palestinos e dos gays.
Você acredita que Donald Trump pode ganhar a eleição para a presidência americana?
Sim. Há um discurso muito de direta nos Estados Unidos. Dizem que o resto do mundo é pobre e que (os americanos) estamos todos ótimos, pela graça de Deus. Mas não somos tão diferentes. Muitos países decentes, muita gente decente caiu nas mãos de ditadores e demagogos. Por que não cairíamos? Basta ter mais três atentados terroristas, um 11 de Setembro a mais. É possível que as pessoas fiquem apavoradas e reajam assim, votando em um palhaço, uma pessoa monstruosa. Ele é realmente pior do que os (demais) republicanos.