Numa das mesas mais aplaudidas até agora da 14ª Festa Literária Internacional de Paraty, Benjamin Moser e Heloísa Buarque de Hollanda falaram das semelhanças e das peculiaridades únicas de Clarice Lispector (1920 – 1977) e da homenageada desta edição, Ana Cristina Cesar (1952 – 1983).
Moser, biógrafo autor de Clarice, também coordenou a tradução das obras da autora para o inglês, inclusive a do bem sucedido livro reunindo todos os contos da autora – e que, depois de muito elogiado lá fora, ganhou edição por aqui pela Rocco. Já Heloísa Buarque de Hollanda foi amiga, correspondente de Ana C., e a incluiu em Poesia Marginal, uma das primeiras publicações do mercado editorial mainstream a perceber a existência da geração que distribuía sua poesia em forma de folhetos ou páginas mimeografadas, que incluía Ana mas também Cacaso, Chacal e outros.
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– Era época de ditadura militar, época de censura de retomada dos protestos pelo fim do regime, e havia uma geração que testemunhava isso de um modo muito único, distribuía seus trabalhos em processos artesanais. O livro se chamou Poesia marginal porque “marginal” na época significava à margem do mercado editorial. Hoje há a poesia marginal mesmo, a da margem social, na época era apenas esse pessoal fora das editoras. – explicou Heloísa.
Enquanto reunia a obra, Heloísa quis a presença de mais mulheres, e foi assim que fio apresentada a Ana por uma amiga que era professora da jovem poeta.
– Marquei um encontro com ela num protesto político. E de repente chegou aquela mulher linda, com uma cabeleira enorme, muito performática, ela se vestia de um jeito muito performático, e ela chegou e me disse “muito prazer”, ficou vermelha feito um tomate e desapareceu. Só semanas depois fomos retomar contato, comentou.
Provocados pela mediadora, a poeta Alice Sant’Anna, Moser e Heloísa falaram sobre a dificuldade de alguns leitores se conectarem à obra de ambas, e se o fato para isso era a descoberta da obra em período muito tardio da vida. Por que, nas palavras de Alice, Clarice e Ana são “tão performáticas e tão populares”.
– Tem pessoas aqui que não gostam da Clarice, não é por questão política, mas porque nunca bateu. Você não pode forçar isso. Ela mesmo diz isso na sua última entrevista, ou entra ou não entra. – disse Moser, complementando – E a obra dela não é uma coisa que pode entrar pela cabeça. Tem de ir pelo coração e até pelas entranhas. Se não entrar pela barriga, não vale a pena, passe para outra coisa. Estou escrevendo agora sobre a Susan Sontag, que é toda cabeça, uma cabeça enorme, e ali você entra pelo intelecto e depois vai saber o que sente com aquilo, mas Clarice não pode ser assim.
Já Heloísa afirmou que não conhece muitos que não gostem de Ana C.
– Você lê o que ela escreve e cai imediatamente na intimidade dela ao ler aquilo, mas isso é uma armadilha dela no texto, porque é tudo falso, tudo retórica. Ela gostava de dizer que literatura é fingimento, mas em bases sentidas. Ela fazia o trabalho do falso segredo, da falsa intimidade com o interlocutor. Acho que nesse sentido a Clarice era muito mais sincera em sua obra, a Ana fingia.
– Clarice era sim muito sincera. Se você pegar os textos dela do início e for indo até as últimas coisas que ela deixou, você sente mesmo aquilo. Ela morreu com 56 anos e você sente que ela não aguentava viver mais. – completou Moser.
Mas havia um elemento comum, de acordo com Heloísa:
– Ambas tinham uma fé inabalável na linguagem como significação, uma aposta na linguagem, e a Clarice chega a isso a partir da Água viva. E a Ana pega essa bonde depois do Água Viva.
Moser apartou que Água Viva talvez tenha sido um dos romances brasileiros que mais inspiraram poetas, e que vê a origem disso no sentido místico que Clarice dava ao seu trabalho, algo que ele relaciona com as origens judaicas da autora:
– Acho que isso tem um sentido místico, a ideia de querer descobrir o Deus que se escondia atrás da palavra. No judaísmo você é obrigado a descobrir o nome de deus, uma busca que você sabe impossível, mas tem de fazer assim mesmo.
Heloísa lembrou que Ana C. tinha uma formação diferente, protestante, de uma família com forte atuação social.
– Ana disse que a coisa mais importante que ela fez na vida foi acreditar em Deus, mas você vê pelos textos que ela continua acreditando. A partir daí, ambos falaram sobre a relação das duas com a religião e o morte, e como ambas tinham uma relação obsessiva com o ato de escrever. Clarice disse certa feita, lembrou Moser, que “a vida estava ótima, o que atrapalha é escrever”. Heloísa lembrou que Ana também escrevia sem parar, mas tinha com a literatura uma relação diferente, como se só conseguisse se imaginar a partir dela, e encenasse sua existência com base nesse princípio.
– A Ana era performática, a roupa dela era literária, extravagante, ela se fantasiava mesmo.
Heloísa depois teceu as relações inquietas de Ana com a questão do feminismo, muito marcada pela divisão que houve no feminismo brasileiro dos anos 1970, que não abordou questões que o movimento estava enfrentando lá fora. Como uma das forças mais atuantes no combate à ditadura era a Igreja católica, e portanto uma aliada na ocasião, o feminismo dos anos 1970, segundo Ana, não se lança com intensidade às questões do corpo, da sexualidade e do aborto, Feminismo explodiu nos anos 1970.
– Naquele tempo, o feminismo tinha um ativismo um pouco fora de época, dividido entre a busca das mulheres silenciadas em época como o século 19 e a corrente lacaniana, herdeira da (Hélene) Cixou, que falava de uma escritura feminina e introduziu isso no Brasil.
Ana C. entra no debate a certo ponto pela via da galhofa, criando um personagem, a brasilianista Sylvia Riverrun, uma caricatura de alguns dos jargões da época. mas depois “abandona a briga brilhantemente” deixando a personagem gradativamente sumir, nas palavras de Heloísa. Como o feminismo está na linguagem, Ana também escreve em sua poesia “Cansei de ser homem”, o que para, ela, significava escrever com “início, meio e fim”.
Uma apresentação de fotos e cartas enviadas por Ana C. a Heloísa foi o ponto mais comovente do encontro. Cartas em papéis coloridos, cheios de colagens e recortes, e uma mensagem gravada com a voz da própria autora falando sobre como ela pensava as próprias cartas como um trabalho criativo.
– Mesmo as cartas dela eram parte da obra, disse – Heloísa.
Ao fim, a mesa foi saudada com uma das mais entusiasmadas ovações desta Filp.