Previsto para ser realizado no último domingo (29), na programação cultural da 41ª Feira do Livro de Ivoti, no Vale do Sinos, o espetáculo Cuco – A Linguagem dos Bebês no Teatro foi cancelado pela prefeitura às vésperas da apresentação. Segundo Mário de Ballentti, diretor artístico da Cia Caixa do Elefante (grupo responsável pela montagem), não houve um motivo concreto informado para o cancelamento, mas ele aponta que houve uma campanha de desinformação.
Mário afirma que as notícias falsas sobre o conteúdo da peça partiram de um grupo de WhatsApp chamado “Pais Atentos Ivoti”, onde se alertou que o espetáculo poderia conter supostas “doutrinações de gênero”, sem especificar como.
— No grupo, eles levantam uma bandeira de proteção à família, que estamos indo lá para tocar nos bebês. Que é um espetáculo “doutrinador”. Que estamos doutrinando bebês de 0 a três anos, olha o nível de loucura! — exaspera-se o diretor. — Sermos queimados por uma prefeitura, atirados como abusadores, enquanto estamos fazendo um trabalho pioneiro no RS, é uma violência.
A reportagem de Zero Hora obteve acesso aos supostos prints e áudios do grupo. Um suposto coordenador de campanha alega que pediria a exoneração da secretária de Cultura e Turismo, Raiama Trenkel, que seria responsabilizada pela contratação do espetáculo. Entre as reclamações, há um descontentamento com o pedagogo Paulo Fochi, responsável pela pesquisa e concepção pedagógica da peça.
No primeiro semestre, pais e vereadores de Ivoti acusaram de doutrinação um projeto pedagógico aplicado na Escola de Educação Infantil Bom Pastor, que seguia as diretrizes de Fochi. Denunciaram que havia implantação da ideologia de gênero na escola, entre outras questões. Houve um debate caloroso no município, culminando em bate-bocas em reuniões e sessões na câmara de vereadores.
Mário relata que a secretaria comunicou o cancelamento por telefone na última quarta-feira (25), mas não divulgou a decisão de imediato. Acrescenta que, na ligação, ouviu que o motivo para a decisão foi a “preservação da integridade do elenco”.
Até então, o espetáculo nunca havia recebido comentários depreciativos ou foi acusado de “doutrinação”, como garante o diretor. Criado há 12 anos, Cuco já circulou pelo Estado e pelo país. Em 2015, a montagem recebeu quatro premiações do Troféu Tibicuera – teatro infantil (melhor espetáculo, melhor produção, melhor cenografia e melhor direção).
Cuco está disponível no YouTube. Com duração de 50 minutos, dois atores ou atrizes (dependendo da temporada) realizam uma sequência de cerca de 20 minutos de coreografias e brincadeiras entre si, em um jogo de esconder e revelar, manipulando objetos que encolhem, esticam e achatam — como edredons. Depois, pais e filhos têm a oportunidade de caminhar pelo espaço e interagir com os objetos por meia hora.
— Nosso espetáculo é para pais, mães e bebês acompanhados viverem uma experiência sensorial. Nós não tocamos em bebê nenhum — diz o diretor. — A pesquisa é em cima das primeiras experiências sensoriais dos bebês, que é o aparecer e desaparecer. Encolher e esticar. Aquela brincadeira de se esconder atrás de uma fralda que os pais fazem. O bebê vai experimentando os objetos dessa maneira.
Tudo em Cuco é pensado para que os cuidadores e bebês sintam-se acolhidos, como frisa Mário: a sala precisa ser clara, e o volume do som, controlado. O palco, que é branco e higienizado, fica no nível das crianças. Os bebês se postam com um dos pais em pequenas poltronas. O espetáculo costuma contar com sala de espera com brinquedos, fraldários nos banheiros do local, estacionamento para carrinhos de bebês e locais para bolsas e sapatos.
Após o episódio, Mário atesta que recebeu apoio do país inteiro. Perguntado se a companhia pretende tomar alguma medida judicial, ele diz ser cedo ainda. Que é necessário se pensar com estratégia, passo a passo. No entanto, a frustração foi grande.
— Esse é um problema que não está acontecendo só comigo. Essa situação está catalisando tudo o que está acontecendo com o teatro no Brasil e aqui no Sul. Há vários relatos de grupos gaúchos também estão sofrendo cortes — pontua o diretor.
Prefeitura e grupo de pais
A reportagem entrou em contato com a prefeitura de Ivoti para esclarecer o cancelamento da apresentação de Cuco. Em nota, o executivo municipal informou: “A fim de evitar que possíveis manifestações de protesto pudessem pôr em risco a continuidade da Feira do Livro, optou-se pelo cancelamento da apresentação”.
A prefeitura também negou que um coordenador de campanha tenha pressionado o prefeito, Martin Kalkmann (PP), a retirar o espetáculo da programação. Ainda, garantiu que a secretária de Cultura e Turismo, Raiama Trenkel, estaria mantida no cargo.
Em nota conjunta, os representantes do grupo "Pais Atentos Ivoti", alegaram que a afirmação de censura é fake news.
"Há poucos meses um grupo de pais teve uma reunião online privada, invadida, através de um perfil falso, pelo professor Paulo Fochi, onde o mesmo, com palavras de baixo calão, proferiu ofensas aos que ali estavam presentes, os chamando de "seus Filho da P...". Tal fato teve repercussão e repúdio dos moradores nas redes sociais, ao ponto da secretaria de educação do município cortar a parceria com o mesmo professor. Posição essa, exposta pela secretária da Educação em sessão oficial da Câmara de Vereadores, em data 06/05/24, e quando questionada sobre o motivo do cancelamento da parceria com o mesmo, ela respondeu: "porque realmente a atitude do Paulo Fochi não é uma atitude que nós como educação defendemos", diz o comunicado.
O grupo acrescenta:
"A concepção pedagógica de Cuco pertence a Paulo Fochi. Por isso, nos surpreendeu a tentativa de insistir com essa parceria e de qualquer outra que tenha o Sr. Paulo Fochi como referência. Como pais, moradores e construtores da história da nossa cidade de Ivoti, conhecemos muito bem a educação que temos aqui, que por certo, é exatamente isso que queremos preservar!".
Apoio de entidades
Entre as entidades que manifestaram apoio à Cia Caixa do Elefante está a Associação de Circo — Circosul, que publicou a manifestação de Mário em suas redes sociais.
O Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado do Rio Grande do Sul (SATED/RS) destacou que o espetáculo é “uma referência no teatro para a primeira infância” e manifestou repúdio ao cancelamento: “Premiado e aclamado, o espetáculo foi retirado da programação sem justificativa oficial, após pressão de grupos que alegaram, sem fundamentos, a existência de ‘doutrinação de gênero’. Esse tipo de censura representa um retrocesso cultural e fere o direito ao acesso à arte e cultura, garantido pela Constituição Federal”.
A Associação Brasileira de Teatro de Bonecos (ABTB) ressaltou que “a censura sofrida, motivada por desinformação e preconceito, é um ato que repudiamos veementemente”. “Conhecemos de perto a qualidade artística e educativa desse espetáculo, que ao longo dos anos encantou milhares de famílias e crianças, sem jamais incitar qualquer tipo de conteúdo ‘político’ ou ‘doutrinador’ (...) A ABTB permanece firme em seu apoio à liberdade artística e se posiciona contra esse tipo de censura que, além de prejudicial, é uma afronta aos direitos culturais garantidos pela nossa Constituição”, acrescentou a entidade.
A Associação Mães e Pais pela Democracia manifestou apoio à Caixa do Elefante Teatro de Bonecos e repudiou o cancelamento do espetáculo. "Este lamentável episódio revela o perigoso avanço da desinformação e do preconceito sobre o livre acesso à cultura, um direito fundamental garantido a todas as crianças pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A cultura e a arte são pilares essenciais no desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças, e qualquer forma de censura a esses direitos deve ser veementemente combatida" diz a nota.
O Presidente da entidade, Júlio Sá, informou que levou o caso ao Fórum de Combate à Intolerância, composto pelo Ministério Público Federal e diversas outras entidades públicas e privadas da sociedade civil, para as medidas cabíveis.