Por Everton Cardoso
Jornalista e crítico
Este fim de semana foi emblemático na história de Porto Alegre, sobretudo para as artes cênicas, em particular para a dança. Em primeiro lugar — e motivação inicial para este texto —, por mais uma passagem do Grupo Corpo pela cidade para um encontro muito singular e memorável com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) na Casa da Ospa no Centro Administrativo Fernando Ferrari. Para se medir a relevância da companhia mineira e dimensionar o que representa, basta citar que nas quase cinco décadas de atuação já apresentou 43 obras, fez turnês nacionais e internacionais e colaborou com compositores de diferentes vertentes, constituindo-se em referência importante no seu campo de atuação.
E é justamente nesse âmbito das referências que este mesmo fim de semana é também de perda no RS: estamos nos despedindo de Iara Deodoro, bailarina, coreógrafa e intelectual porto-alegrense que nos deixou na última sexta (27). É por isso que, neste texto, faço questão de estabelecer um diálogo com ela para falar do que este importante encontro que presenciamos na Casa da Ospa em duas apresentações representa para a nossa cena cultural. Já conhecia a mestra Iara por sua atuação nos palcos, por seu pensamento e por sua vivência carnavalesca, mas no ano passado, ao fazer aulas de dança no AfroSul/Odomodê, pude entender o quanto havia, além de todo o mérito artístico, uma generosidade sem precedentes nessa mulher que, negra, muito cedo entendeu que sua missão na vida seria nos fazer entender a raiz afro-gaúcha.
Um dos grandes aprendizados que certamente muita gente teve com Iara foi o de que nossos corpos têm sotaque. Segundo ela, diferentes formas de dança que partilham uma mesma raiz vão adquirindo modos muito singulares conforme quem as cria e interpreta, mas também a partir de seu tempo e espaço. Iara, lembremos, "dançava" uma África ancestral que, no final, existia nela, em sua conexão com a terra natal de seus antepassados. E essa ideia de sotaque é um bom caminho para olharmos para o trabalho do Grupo Corpo.
Desde a seminal montagem de Maria, Maria, em 1976, a companhia cujas coreografias são em sua maioria de Rodrigo Pederneiras vem criando um vocabulário muito próprio na dança contemporânea, conectando-a à cultura brasileira em duas diferentes manifestações. Mas, é importante ressaltar, não como uma cópia ou uma colagem de elementos. Há sutilezas, nuances que fazem de cada movimento algo que só poderia estar no repertório desse conjunto.
Assim como mestra Iara nos ensinava que sua dança afro era singular — mesmo se comparada a danças afro-brasileiras desenvolvidas em outras partes do país —, também a linguagem de Rodrigo possui seu sotaque: os movimentos de quadril estão lá, ao mesmo tempo muito familiares e diferentes de tudo que já vimos; meneios de coluna, ondulando, também nos remetem a algo muito brasileiro, mas que demoramos a reconhecer; da mesma forma, batidas de pé no solo, alternando pé inteiro, ponta e calcanhar combinados com pernas estendidas ou flexionadas; muitos momentos de braços relaxados ao longo do corpo ou movimentos circulares do antebraço são reconhecidos mas ao mesmo tempo novos; isso sem falar nos pares enlaçados à maneira de danças de salão e realizando rodopios por debaixo dos arcos formados pelos braços. Ali estão o samba, o xaxado, o chamamé, o forró, a catira e tantas outras expressões musicais e coreográficas brasileiras, mas reprocessadas com uma linguagem e um sotaque muito únicos.
O programa do fim de semana incluiu duas obras do repertório do Corpo: sete trechos de Dança Sinfônica, de 2015, criação para música de Marco Antônio Guimarães e que revisita, de modo bastante livre, as primeiras quatro décadas de coreografias da companhia; já Estancia é um projeto que estreou em 2023 numa apresentação em anfiteatro para 18 mil pessoas juntamente com a Orquestra Filarmônica de Los Angeles, sob a regência de Gustavo Dudamel, e que parte da música para balé do argentino Alberto Ginastera. Foi, depois, reapresentado no mesmo ano com a Filarmônica de Minas Gerais e, em 2024, com a Orquestra do Estado de São Paulo (Osesp).
Desde a seminal montagem de 'Maria, Maria', em 1976, o Grupo Corpo, cujas coreografias são em sua maioria de Rodrigo Pederneiras, vem criando um vocabulário muito próprio na dança contemporânea
EVERTON CARDOSO
Jornalista e crítico
A primeira parte da apresentação foi aberta pela Ospa com Batuque, da Série Brasileira, composição de Alberto Nepomuceno. Sob a regência de Evandro Matté, o conjunto apresentou bem a obra plena de nuances e coloridos que dão uma sensação de algo muito "dançante", corporal. Foi uma bela escolha para criar uma ambiência para o que viria depois.
Em Dança Sinfônica, bailarinas usavam collants vermelhos e bailarinos vestiam blusa e calça pretas, com três tiras atadas próximas às barras destas. Alternando solos, pas-de-deux e conjuntos, constrói uma sequência de momentos que transitam do solene ao lírico, do dramático ao soturno. Alternam-se, assim, cenas que, completamente abstratas, constroem sensações e nos conduzem por um vocabulário coreográfico variado, vigoroso e visualmente interessante. Retomando mais um ensinamento de Iara Deodoro: é na alternância que a dança ganha potência, quando forte e fraco, intenso e sutil constroem uma plasticidade visualmente provocante.
Destacam-se duas cenas: na metade do espetáculo, uma bailarina com collant em tom rosa claro surge encolhida no colo de um bailarino, ambos sob foco de luz enquanto a música é melancólica e depois dançam; mais tarde, para encerrar a peça, ela corre atravessando o palco e salta para novamente ocupar a mesma posição — e isso depois de uma vigorosa coreografia em que conjuntos se alternam, aumentando o impacto desse momento que nos remete a acolhimento, mas também a solidão. Talvez a única ressalva que apontaria seria uma divergência nas expressões faciais de bailarinas e bailarinos em momentos de conjunto. Ainda que possa haver espaço para expressão individual e que este seja um espetáculo essencialmente abstrato, uma proximidade poderia potencializar os movimentos, construindo uma dramaturgia em que olhos e bocas nos contam algo, criam um clima.
A segunda parte do concerto teve um ambiente diferente. Depois de a orquestra apresentar Danzón n° 2, do mexicano Arturo Márquez, estava estabelecida uma outra vibração. Na sequência, a coreografia de Estancia apresentou uma linguagem distinta da anterior: por um lado, havia mais movimentações de braços; por outro, incorporava elementos regionais platinos. O destaque, com certeza, está em dois aspectos: os passos que foram inspirados no malambo, tradicional sapateado do gauchos argentinos, estavam presentes por meio das diferentes formas de bater os pés no chão e extrair som; e nas saias que as mulheres usavam — com bicos e em panos, mesclavam a fluidez das saias rodadas com a aparência de ponchos. Os tons terrosos do figurino também complementam esse ambiente que ao mesmo tempo promove um encontro entre modos regionais e linguagens de circulação mais ampla.
Mais uma vez, o que se viu foi o sotaque do Grupo Corpo ao trazer um modo bastante abstrato de olhar para música e dança e para suas potências enquanto estímulos auditivos e visuais
EVERTON CARDOSO
Jornalista e crítico
A participação do baixo-barítono Licio Bruno abrilhantou essa obra, já que ele declamou, cantou e recitou trechos. Interessantes foram os dois momentos em que bailarinos executaram movimentos vigorosos ao som de texto recitado, explorando a musicalidade da fala. Organizada pelo compositor em quatro cenas — amanhecer, manhã, tarde e noite —, a peça musical foi pensada originalmente para tratar de uma moça que leva um jovem interessado por ela a se mostrar um verdadeiro gaúcho. Rodrigo Pederneiras, porém, traça essa jornada sem um fio condutor claro, mas criando cenas visualmente provocativas. Mais uma vez, o que se viu foi o sotaque do Grupo Corpo ao trazer um modo bastante abstrato de olhar para música e dança e para suas potências enquanto estímulos auditivos e visuais.
Para quem esteve na Casa da Ospa, portanto, foi um momento importante de presenciar mais um potente encontro protagonizado pela orquestra — venho há tempos ressaltando esse papel mobilizador e articulador que a instituição desempenha com grande qualidade. No campo cênico-coreográfico, destaca-se a montagem para a cantata Carmina Burana, de Carl Orff, realizada em conjunto com a Companhia Municipal de Dança de Porto Alegre em 2016 — isso sem contar participações mais pontuais em óperas. Que este momento de um encontro importante que coincide com uma perda profunda para a dança em Porto Alegre seja de inspiração para justamente, como cidade, pensarmos tanto sobre os encontros que esse tipo de espetáculo rende quanto sobre o que temos por aqui e que poderia ser mais visto, mais mostrado, mais dançado.
Até a próxima, Grupo Corpo! Até sempre, mestra Iara!