Everton Cardoso*
Quando inicia o movimento O fortuna, da cantata Carmina Burana, composta por Carl Orff, a sensação que se tem é de que algo monumental está por vir. Foi isso que se viu no Auditório Araújo Vianna, neste fim de semana, na montagem da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa): eram cerca de 220 pessoas no palco, entre conjunto orquestral, coro sinfônico, coro infantil, dançarinos e cantores solistas. É para ficar na memória da cidade e de quem teve a oportunidade de estar lá.
A participação da Cia. Municipal de Dança merece destaque. A coreografia de Ivan Motta, na maior parte do tempo, foge dos lugares comuns narrativos ou mais figurativos e se ampara em movimentos corporais que – abstratos, mas de impacto – acompanham a movimentação musical de forma bastante harmônica: dramáticos, delicados, jocosos ou triunfantes, correspondem às variações propostas pelo compositor e que a orquestração e o canto enfatizam muito bem. Os figurinos de Antônio Rabadan seguiram a mesma linha: eram sintéticos e serviam bem à movimentação; inclusive, davam mais leveza e amplitude ao bailar. Restou-me apenas uma pergunta – não exatamente no sentido de uma crítica, mas de indagação mesmo: por que, sendo um vestuário tão contemporâneo, manter uma linguagem arraigada no gênero, com homens de calça e mulheres de vestido? Ainda assim, a performance da companhia foi de qualidade – exceto por uns raros e quase imperceptíveis momentos de desarmonia grupal e por algumas imprecisões de passos pelos dançarinos.
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Um telão, ao fundo, tinha projeções em movimento praticamente o tempo todo. Destoava do conjunto e, em muitos momentos, chegou a ofuscar a dança. Não há nada de ruim no uso de cenários em projeção ou em movimento; mas são os bailarinos que têm de ganhar relevo, ainda mais para valorizar uma boa coreografia como esta. Há, na ação do corpo humano, uma beleza que lhe é única e que pode reforçar o aspecto humano presente na cantata, sobretudo na alternância entre o que nos é essencial, apesar de nossa transitoriedade.
Sob a regência do maestro Evandro Matté, instrumentistas e cantores executaram a peça de Orff com competência – ainda que em algumas poucas ocasiões o canto do coro perdesse um pouco de sua força. O tenor Flávio Leite, no inusitado papel de um cisne assado que canta sobre si mesmo, consegue interpretar muito bem o tom engraçado do movimento musical. A coreografia feita pelos bailarinos atrás dele, inclusive, serve muito bem para reforçar esse caráter. Também a soprano Gabriella Pace e o barítono Homero Velho fizeram ótimas apresentações, com destaque para a parte final da obra: transcendem o canto e atuam de forma convincente, dando o tom romântico que o trecho demanda. Ver este trio de nomes importantes da cena lírica nacional por aqui é um privilégio.
Não resta a menor dúvida que este é um ótimo produto de cooperação entre importantes instituições públicas locais e artistas. É, por isso, um deleite para os porto-alegrenses. Quantas são as oportunidades de vermos um belo espetáculo de dança executado em conjunto com orquestra e coro na cidade? Tomara que, em 2017, Carmina Burana volte aos palcos; oxalá, também, a ópera Don Pasquale, apresentada em agosto deste ano, tenha novas apresentações; esperamos, ainda, que haja montagens de novas obras. Ganhamos nós, público que tem lotado as plateias; ganham os artistas; ganha a cultura.
É uma lástima, apenas, que o Araújo Vianna, nosso maior espaço para apresentações, não tenha uma acústica adequada: orquestra, coro e solistas precisavam de microfones, o que deixa a música um pouco mais agressiva aos ouvidos e com nuances menos sutis. Em tempo: o tradicional Theatro São Pedro historicamente recebia espetáculos como este, mas isso se tornou inviável desde que, na reforma executada nos anos 1970, uma parede não estrutural foi posta no fosso onde ficam os músicos. Até quando esperaremos para ver, de novo, montagens cênico-musicais com orquestra em nossa mais bonita e mais acusticamente adequada casa?
* Jornalista e crítico