Caricatura de um país bagunçado, a Sbornia completa 40 anos. Surgiu no fim da ditadura militar no Brasil, durante as Diretas Já, conquistou o público durante a redemocratização, passou por governos de esquerda e de direita e segue se reeditando. Antes Tangos e Tragédias, agora Sbornia Kontr'Atraka, o espetáculo morreu e ressurgiu nos palcos de Porto Alegre e de todo o Brasil, mas principalmente no Theatro São Pedro (TSP), onde retorna para a tradicional temporada de verão, a partir desta sexta-feira (19) até 4 de fevereiro, de sexta a domingo.
Comissário de bordo que passou a capitão da anárquica ilha flutuante que desgrudou do continente, Hique Gomez, o Kraunus, sempre quis que o espetáculo fosse arte séria, apesar de debochada, apoiada no humor satírico chapliniano que herdou de seu avô, um ambulante artista de rua fã do mestre do cinema. Ao lado de seu grande parceiro Nico Nicolaiewsky (1957-2014), o Mestre Pletskaya, viu o espetáculo amadurecer diante da plateia, repleta de pessoas de diferentes partidos e até dos sem partido, mas todos se rendendo à crítica social bem-humorada. Os que ainda não assistiram podem aproveitar a comemoração de aniversário e garantir ingressos a partir de R$ 70 no site do TSP.
— Desde o começo queria fazer uma obra de arte muito séria, muito comprometida, e sigo querendo isso. No começo, apresentávamos tragédias. Depois, com o domínio do que fazíamos, o espetáculo se tornou uma comédia nonsense. E hoje é um musical de verdade, com tratamento técnico. Nossa equipe técnica é muito importante para isso — diz Hique, que estreou o espetáculo em 1984, quando era um jovem músico de 24 anos.
Com a morte de Nico, Hique entendeu que o espetáculo tinha um alicerce que sobreviveria independentemente de personagem: a Sbornia, o país da farra, do dosgoverno. Chamou a atriz e musicista Simone Rasslan, a personagem Nabiha Nabaha, para dar sequência à história que já havia conquistado o coração dos porto-alegrenses. A parceria já era afinada: haviam trabalhado juntos no espetáculo Rádio Esmeralda, criado com ajuda dele e encenado por ela ao lado de Adriana Marques, que também faleceu.
Renascimentos
Além da gana pelas luzes e pelos aplausos, Hique e Simone tinham em comum o luto pelos parceiros de palco. Reinventaram a Sbornia em 2016, incluindo ideias e roteiros elaborados durante os 30 anos do Tangos e Tragédias, mas que sobreviviam guardados em gavetas. Mexeram um pouco aqui e ali, criaram novas músicas, mantiveram a presença do ilustre Cláudio Levitan, o Professor Ubaldo Kanflutz, acrescentaram outros personagens, como o tocador de gaita-foles MenThales, vivido por Thales Melati, e a sapateadora Pierrot Lunaire, de Gabriella Castro.
Batizaram o novo espetáculo de A Sbornia Kontra Atacka, mas, graças a um erro ortográfico da produtora Marilourdes Franarim em um material enviado à imprensa, chegaram ao célebre nome com trava-língua.
Diante de um mundo globalizado que cada vez mais pode compartilhar espantos, tragédias e desenganos, viram que sempre haveria pano para manga quando se trata de retratar um país onde vale a lei de um sobre o outro.
– A Sbornia é um retrato de uma anarquia social. O Brasil esteve nesse lugar no começo, mas hoje é o mundo inteiro. Esses extremistas pelo mundo afora... Se olharmos para o mundo de hoje, cheio de personagens hiperbólicos inacreditáveis e eleitos, multirracial, multicultural, multipolar, multilíngue e apocalíptico… o mundo está se sborniando! – diz Hique.
Aos 64 anos e há 10 apartado de seu parceiro, Hique Gomez precisou redescobrir-se no palco. Durante os 30 anos ao lado do romântico, carismático e arrebatador Pletskaya, teve de aprender a criar caretas expressivas inspiradas em Chaplin, uma admiração que herdara da família. Investiu na comunicação não verbal, algo que mantém mesmo hoje, quando fala mais e lidera o espetáculo que se tornou o mais assíduo evento do Theatro São Pedro. Os dois, inclusive, têm datas em comum: o teatro foi reinaugurado em 1984, mesmo ano que em o espetáculo surgiu.
E Nico Nicolaiewsky, embora morto na forma física, segue vivo na ficção: aparece conduzindo um ônibus em uma projeção no telão.
- Nossa anarquia criativa rendeu grandes frutos. Ele segue no projeto. É um legado extraordinário que iremos honrar sempre. É isso o que penso - diz Hique.
Se a Sbornia é ora realidade, ora ficção, à plateia resta sentar diante do palco e rir com a desculpa da licença poética.
A Sbornia Kontr'Atracka - 40 anos
Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/n°), em Porto Alegre
De sexta e sábado às 20h, e aos domingo às 18h. Até 4/02
Ingressos a partir de R$ 70 no site teatrosaopedro.rs.gov.br