Depois de rodar diversos Estados brasileiros, a peça Embarque Imediato desembarca em Porto Alegre neste domingo (4), em meio ao efervescente 29º Porto Alegre em Cena. Em uma apresentação única no Salão de Atos da PUCRS, às 19h, a família Pitanga traz para o debate a forçada diáspora africana através da escravidão e seus reflexos na identidade dos afrodescendentes (veja detalhes sobre ingressos ao final do texto).
Um dos mais importantes eventos de artes cênicas do país, o POA em Cena apresentará sua 29ª edição em duas etapas. A primeira começa nesta quinta-feira (1º/12) e vai até 7 de dezembro. A segunda etapa será em março de 2023. Saiba mais nesta reportagem e no site oficial do festival.
Embarque Imediato foi escrito pelo dramaturgo Aldri Anunciação como um presente pelos 80 anos do ator Antonio Pitanga (completados em 2019, ano em que a montagem começou a ser apresentada), um artista fundamental no cinema, na TV e no teatro brasileiros, além de um defensor dos direitos dos negros no país. Os filhos e atores Camila e Rocco compõem o elenco ao seu lado – ela por meio de vídeos pré-gravados e ele presencialmente.
Com direção de Márcio Meirelles, a obra promove um debate sobre assuntos necessários, como questões de origem e as consequências da história, bem como o efeito da política nas experiências, histórias e, sobretudo, na identidade.
A trama aborda o encontro entre um jovem doutorando negro brasileiro e um senhor africano, descendente dos Agudás (africanos escravizados no Brasil que retornaram ao país de origem após a alforria quase sempre comprada), em um aeroporto internacional. No personagem do jovem, a perspectiva ocidentalizada e a defesa de que houve aspectos positivos na diáspora forçada dos africanos, que na América foram escravizados, entra em diálogo com o velho senhor descendente de Agudás, que questiona essas supostas vantagens. Ambos os personagens estão confinados em uma sala por terem perdido seus passaportes durante uma conexão de voo. A cena é configurada de modo a apresentar diferentes pontos de vista e permitir que o espectador chegue às suas próprias conclusões.
Embarque Imediato faz parte da Trilogia do Confinamento, escrita por Aldri Anunciação, iniciada pela peça Namíbia, Não! (que ganhou versão no cinema dirigida por Lázaro Ramos, intitulada Medida Provisória) e integrada também por O Campo de Batalha. Os espetáculos da trilogia abordam o tema da condição dos descendentes da diáspora africana.
Deste modo, a peça traz para o debate a questão dos sucessores dos africanos que foram sequestrados e trazidos ao Brasil como escravos — quase 5 milhões foram lançados em viagem pelo mar com esse propósito. O encontro entre as duas gerações em Embarque Imediato busca retomar essa discussão ao contrapor essas duas realidades: a daqueles que retornaram à África, mantendo sua identidade, e a dos que se tornaram cidadãos esculpidos à imagem ocidental.
Ao prestar uma homenagem a Antonio Pitanga, a obra faz lembrar também a história do grande ator, que nos seus 20 anos deixou a ditadura brasileira para ir ao continente africano, onde, durante dois anos, visitou diversos países do Norte buscando descobrir de onde vinha.
— São poucos os jovens hoje no século 21, no mundo, que têm esse desbravamento que eu tive aos 21 anos, de ir à África não visitar mas saber as minhas referências — afirma o ator, aos 83 anos.
Pitanga ressalta a importância do diálogo possibilitado pela peça não apenas para a negritude, mas para a população brasileira, por permitir o entendimento do crime e da violência que esses negros enfrentaram ao serem sequestrados em sua terra natal.
O espetáculo, portanto, é também uma celebração desse necessário debate, que continua atual — afinal, 56% da população brasileira se declara preta ou parda. O artista salienta a necessidade de colocar o dedo na ferida e questionar de qual África os afrodescendentes vieram, já que o continente abriga 54 países. Ele lembra ainda a contribuição do povo africano ao Brasil, por meio da cultura, da dança, da culinária, da música e até mesmo da alegria de viver — pilar que considera mais importante —, e, por esse motivo, lamenta a invisibilidade e o preconceito contra a população negra.
O espetáculo é emblemático para o festival internacional de artes cênicas realizado em Porto Alegre, que nesta edição conta com o porto como conceito-guia, como um lugar mítico, simbólico, de trânsito e intercâmbio, que registra chegadas e partidas — justamente como a trama da obra.
Além disso, para Pitanga, estar em cena ao lado dos dois filhos tem um significado especial. A peça, conta ele, traz a oportunidade da família Pitanga se conhecer melhor através da história e fazer parte dessa discussão que o espetáculo provoca e na qual estão imersos.
— A história está tatuada nas nossas almas. Isso faz com que estejamos vivos participando dessa discussão — pontua Antônio. — A discussão me rejuvenesce, me faz cada vez mais inteiro nessa importância de estar nesta missão.
Mesmo encerrando a temporada deste ano com a apresentação no Porto Alegre em Cena, a família não pretende encerrar o espetáculo. Em 2023, após uma pausa para a conclusão do novo filme de Pitanga, Malês, sobre a revolta na Bahia em 1835, considerada a maior de escravos da história brasileira, a equipe coloca novamente os pés na estrada.
— Faz parte de uma discussão que não tem data para terminar. Enquanto houver a questão do preconceito, da invisibilidade, do feminicídio, vamos conversar para que essa questão permaneça constantemente viva — defende.
Negritude no RS
Apresentado em Porto Alegre pela primeira vez, Embarque Imediato será carregado de sentimento para Pitanga, com ênfase na alegria. Ele enaltece a comunidade negra local e destaca a ligação com os movimentos cultural, político e social do povo gaúcho — no mês de novembro, o ator foi homenageado no III Festival Cinema Negro em Ação. Para ele, dialogar com o povo gaúcho sobre esse tema será um presente, além de uma oportunidade de reconhecer a comunidade negra do RS por sua luta em nível nacional.
Contudo, mais do que isso, ser "convocado" para estar presente e discutir junto à juventude "banha os olhos de lágrimas" porque, em sua visão, ela é um desdobramento do Antonio que foi à África em 1964, que participou do movimento do Cinema Novo e que bebeu da fonte acompanhando momentos históricos do movimento negro, como o black power, os Panteras Negras, Malcom X, Martin Luther King Jr., Angela Davis, entre outros, com uma postura sempre engajada.
— O que me deixa inteiro, essa fonte que eu me banho de eterna juventude, é que eu continuo de pé lutando aquela mesma luta das décadas de 1950 e 1960. São histórias que me emocionam, e eu faço parte. A carcaça pode envelhecer, mas o baú da memória está vivo — finaliza.
Embarque Imediato
- Neste domingo (4), às 19h, no Salão de Atos da PUCRS (Av. Ipiranga, 6.681), em Porto Alegre
- Ingressos a partir de R$ 30, à venda no site