Mais da metade dos assentos está vazia. Boa parte do público sentou-se ao fundo, ao custo de R$ 4,99. Poucos pagaram R$ 10 por criança e R$ 15 por adulto para ficar perto do palco. Alexandra Almeida, 26 anos, e Brenda, oito, estão na segunda fileira da frente. A menina rodopia com folga entre as cadeiras de plástico, imitando os movimentos da assistente do mágico. A plateia é quase toda dela.
A esperança era de que o espetáculo de sexta-feira (22) do The King Circus rendesse mais do que o da noite anterior, quando a família Santos fez R$ 100 de bilheteria. Maria Sirlei dos Santos, 66 anos, conta o número de ingressos vendidos enquanto os filhos e genros se apresentam debaixo da lona erguida no bairro Moradas do Bosque, em Cachoeirinha. O lucro foi um pouco melhor. Arrecadaram R$ 300.
Bem abaixo dos R$ 6 mil que o circo chegava a fazer anos atrás, em apenas uma sessão de final de semana. Época em que o coronavírus não circulava entre nós.
— Fazemos o espetáculo com a mesma dedicação, não importa quantas pessoas estão na plateia. Quem veio não pode ser prejudicado por causa dos que não vieram — diz Alex dos Santos, 28 anos, antes de vestir a roupa de mágico.
Filho de Maria Sirlei, Alex administra o circo da família, fundado pelo pai, Getúlio dos Santos, no fim dos anos 1990. Assumiu o controle do negócio após o patriarca morrer de H1N1 em 2019, o que abalou a mãe e os outros quatro irmãos, todos artistas de picadeiro. O desafio dobrou quando a pandemia chegou fechando tudo, em março do ano passado.
Fazia apenas três semanas que o The King Circus havia se instalado em Ipanema, na zona sul de Porto Alegre. Tiveram de cancelar os espetáculos, mas o circo ficou lá, montado em um terreno na Avenida Juca Batista. Acostumados a viajar de cidade em cidade arrancando risadas, pela primeira vez os Santos se viram parados. Não viam mais o público, nem dinheiro entrando na bilheteria.
Do picadeiro para as ruas
Com o caixa zerado, os Santos deram adeus aos artistas que eram pagos por apresentação. Tiveram apoio da vizinhança da Juca Batista que, ao verem o circo fechado, levavam, dia após dia, sacolas de alimentos para a família.
Uma das alternativas para driblar a falta de dinheiro partiu de Aline, 38 anos. Ela nunca sentiu a mesma atração que os irmãos pelo picadeiro — prefere ficar do lado de fora da lona, oferecendo doces para quem vem assistir ao espetáculo. Sem pensar em desistir da herança do pai, passou a vender bolo no pote e maçãs do amor com a ajuda do cunhado, Jorge Bairros, 36, e do irmão Alexandre, 24.
— O meu pai, no leito de morte, falou para a gente seguir essa paixão dele. Então estamos aqui — diz Aline.
Alex também arregaçou as mangas. Criado diante do público — foi alvo de atirador de faca com apenas três anos e, aos sete, apresentou-se pela primeira vez no trapézio —, o administrador do The King Circus levou sua arte para as ruas: passou a jogar malabares nos minutos de descanso dos motoristas debaixo das sinaleiras.
— Vergonha, para o artista, não tem que existir — reflete Alex.
Tentativas
Houve momentos de reencontro com o público mesmo durante o período mais crítico da pandemia, quando os Santos tiveram de se modernizar e investir nas estratégias que o resto do mundo usou para fugir do isolamento. Uma delas foi apostar em lives nas redes sociais. Arrumavam o circo, vestiam as fantasias e, diante do cenário pronto, colocavam um celular e transmitiam o espetáculo. Quem queria acompanhar, fazia um depósito bancário.
O meu pai, no leito de morte, falou para a gente seguir essa paixão dele. Então estamos aqui
ALINE DOS SANTOS
integrante da família do The King Circus
Também testaram o drive-in. Em junho do ano passado, a família pôde receber, debaixo da lona, cerca de 20 carros. Não conseguiam ouvir as risadas e, em vez de aplausos, recebiam de volta, a cada número, um buzinaço.
— Era um espetáculo diferente. Os aplausos por buzina... Tu não sentia o calor humano, não sabia nem quem estava dentro do carro — lembra Jorge.
Foram três ou quatro semanas apresentando-se em drive-in, até um novo decreto impedir tudo novamente.
Espetáculo a qualquer custo
Os Santos só puderam reabrir o circo em julho deste ano, quando houve permissão por parte do governo do Estado. Finalmente, desmontaram as coisas e saíram da Juca Batista. Enfrentaram um empecilho quando ergueram a lona em um terreno de Cachoeirinha: houve quem reclamou do barulho dos artistas, mas a prefeitura deu o alvará mesmo assim.
Acostumados a lotar a plateia, a família agora se contenta com um movimento escasso. Mas há, na interpretação de Alex, um resgate promovido por pais e mães saudosos da própria infância, que querem mostrar para os filhos qual era o tipo de diversão no passado.
— As crianças ficaram tanto tempo em casa nessa pandemia, no computador, na internet, que os pais querem resgatar essa cultura de antigamente — acredita.
Maria Sirlei mostra as poucas notas de dinheiro arrecadadas naquela noite de sexta-feira. Diz que a vida de quem vive do circo é feita de altos e baixos, e que seguir adiante é uma missão deixada pelo marido, Getúlio, em quem pensa todos os dias.
— O mundo é uma faculdade — reflete a matriarca. — A gente aprende a dançar conforme a música.
Brenda dança diante do palco como se fosse a primeira vez que assiste ao The King Circus. Mas é a sexta. Alexandra faz questão de levar a filha, repetidas vezes, para prestigiar os artistas recém instalados.
— É ótimo, né? É alegria para a cidade. Como a gente não vai querer ajudar?
Sinal de que o circo pode resistir e seguir de geração para geração.