Por Eneida Cardoso Braga
Psicóloga, psicanalista, doutora em Filosofia
É com muita sensibilidade que o Coletivo Nômade: Teatro e Pesquisa Cênica em parceria com a Companhia de Solos e Bem Acompanhados nos apresenta o espetáculo de vídeo-teatro Classe Cordial. Uma linda composição que entrelaça o homem cordial, descrito por Sergio Buarque de Holanda, com o sujeito que hoje vive segregado não só pelo momento de pandemia, mas também pela invisibilidade que é imposta pelos padrões normativos e pela incapacidade de conviver com as diferenças.
Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do Brasil, define o brasileiro como um sujeito que prioriza a cordialidade. Essa expressão gerou muitas interpretações diferentes das que o historiador pretendeu significar. Com essa expressão, ele não se refere a um ser bondoso ou gentil, avesso a conflitos, mas sim, ao homem que age com o coração, do radical latino cordis, palavra que origina o termo cordial. O brasileiro, em sua análise, é aquele que prioriza a emoção à razão. Isso significa que ser cordial pode, muitas vezes, significar ser violento, pois amor e ódio compartilham o mesmo espaço relativo ao coração.
Essa tese impressiona por sua atualidade, mesmo o livro tendo tido sua primeira edição na década de 1930, porque nos fala de uma sociedade que se alicerça em lógicas dualistas e apaixonadas, em geral mantendo escondidos os sentimentos agressivos e exibindo a polidez de uma forma superficial. Nós vemos isso cotidianamente nas redes sociais, que têm servido para que pessoas antes conhecidas por sua gentileza nos surpreendam com a intensidade de seus impulsos agressivos. O agir movido pela razão, como todos os atos civilizatórios, pressuporia uma capacidade maior de complexidade e crítica diante de questões difíceis de serem compreendidas e resolvidas de imediato. A tendência ao individualismo, inclusive de pensamento, e a urgência de satisfação pessoal desse homem cordial, impedem esse avanço.
Sabemos que a história de nosso país, marcada pelo colonialismo, pela exploração, pelo racismo estrutural, é uma história violenta, que não dialoga com facilidade com as diferenças. O diferente precisa ser escondido, segregado, dominado, invisibilizado, e não raro, assassinado. O doente mental, assim como o negro, a mulher, os sujeitos que não correspondem a um binarismo sexual, os portadores de deficiência, e tantos outros que não se enquadram nos padrões da normalidade instituída, são vistos como se constituíssem uma ameaça, como se fossem portadores de uma doença contagiante. Preconceitos de raça, gênero, religião, posicionamentos político-partidários geram desde rompimentos familiares até guerras e genocídios. Parafraseando a personagem, é preciso que a gente abra os olhos. É preciso que a gente veja, que a gente se pergunte por quê.
Deborah Finocchiaro interpreta de forma belíssima as vozes que ecoam no interior de cada um de nós. A personagem de Classe Cordial se confunde em seus reflexos, como num jogo de espelhos, projetando imagens de outros tempos e de outros espaços, numa infinita repetição do que é revelado e do que pode ou não ser reconhecido por nós como real. “É preciso que vocês olhem e que vocês se vejam”, diz, como diria Freud sobre a importância do reconhecimento do inconsciente.
A propósito, sobre o caráter ameaçador da diferença, Freud nos relata um fenômeno de amor entre iguais e ódio ao diferente: o “narcisismo das pequenas diferenças”. Trata-se de um artifício utilizado como forma de delimitar uma fronteira imaginária que proteja aquilo que constitui o comum entre um grupo e mantenha afastado o que é considerado ameaçador – o diferente. Esse mecanismo está sempre em ação, pronto para culpar, condenar e exilar o outro, garantindo assim a sensação de identificação e proteção entre os iguais. Um movimento, enfim, que repete infinitamente o modelo de segregação. Classe Cordial é um sensível espetáculo dedicado aos excluídos, e nos convoca a abrir os olhos e ver que as diferenças no outro são também presentes em nós, e que temos ao nosso encargo esse reconhecimento e uma contínua luta pela união dos esforços em direção ao bem comum, “trabalhando com todos para o bem de todos”, para definir nas palavras de Freud essa que seria uma conquista civilizatória.
O espetáculo
- Classe Cordial tem temporada até 30/9, disponível gratuitamente no YouTube do Coletivo Nômade de Teatro e Pesquisa Cênica. Instagram: @classecordial
- Em cena, Deborah Finocchiaro interpreta uma figura feminina enclausurada em um manicômio.
- Diz o material de divulgação: “Entre o dito e o interdito, nossa sociedade estruturou-se sob o pretenso manto da cordialidade. Hospitalidade, generosidade e o bom convívio seriam características dos brasileiros. (...) Ao longo de nossa história, entretanto, muitas foram as instituições que fomentaram o enclausuramento, o silenciamento e a exclusão daqueles que eram vistos como ‘anormais’ perante a norma social instituída. Seríamos mesmo esse povo hospitaleiro e cordial, quando nossas instituições sempre estiveram cheias de violência física e simbólica historicamente naturalizada?”.
- O início do vídeo inclui um trecho do documentário Holocausto Brasileiro, que relata as condições insalubres dos pacientes do Hospital Colônia, em Barbacena (MG). Hoje, registros dão conta de que ao menos 60 mil homens e mulheres morreram lá.