Por Eveton Cardoso*
Uma passagem do Grupo Corpo é momento para uma parada importante no correr da vida de uma cidade como Porto Alegre. É uma oportunidade não só para estarmos diante de um trabalho artístico de grande qualidade, mas também – e exatamente por esse alto parâmetro – para nos permitirmos fazer leituras e pensar sobre questões mais aprofundadas sobre o que se vê. E foi assim com os dois números levados ao palco em cada uma das apresentações ocorridas no Teatro do Sesi no último fim de semana.
O primeiro deles foi Sete ou Oito Peças para um Ballet, montagem coreográfica que estreou em 1994 sobre música do norte-americano Philip Glass e do grupo instrumental mineiro Uakti. A concepção cênica toda é uma ótima referência em muitos aspectos, principalmente por ser uma coreografia que chega a uma espécie de abstracionismo muito interessante, já que não há personagens ou narrativas.
O cenário formado por linhas paralelas verticais irregulares – provavelmente mangueiras plásticas – é um contraponto visual muito provocador quando se movem diante dele os bailarinos: estes usam malhas de uma cor só ou com listas horizontais. A oposição gerada entre o elemento cênico e o dançar nos permite centrar o olhar nos corpos e nas imagens que vão criando.
Mas a grande espera da noite era por GIL, a nova coreografia de Rodrigo Pederneiras para música composta por Gilberto Gil especialmente para a companhia de Belo Horizonte. O cenário amarelo-ouro, combinado com uma iluminação que lembra aquela típica dos shows de música, cria uma vibração que dialoga profundamente com a obra do compositor baiano.
Na coreografia, o gesto típico dos rituais afro-brasileiros – o de Xangô, no qual o bailarino bate com uma das mãos no peito e com a outra nas costas – mesclado com imagens como as que remetem ao pipocar do Carnaval baiano e as que lembram o modo de dançar ao som de funk compõem um repertório visual que muito bem dialoga com a estética da obra do autor de canções como Andar com Fé – que inclusive aparece na forma de citação musical na trilha. Esses movimentos corporais, então, expressam um trânsito interessante entre o tradicional e o moderno, o popular e o autoral, o brasileiro e o universal que é traço constitutivo do trabalho de Gilberto Gil.
Potência
Ainda, a montagem ganha força com o figurino: malhas pretas sobre as quais foram estampados elementos criados pela designer e artista Joana Lira e que incluem flores e figuras de inspiração tribal e rupestre que em muito lembram as pinturas corporais tão marcantes no Carnaval de Salvador. Mas por que elementos florais só aparecem nos figurinos levados por mulheres?
O conjunto todo do que se vê no palco permite o recorte de um conjunto de cenas que acaba por construir uma narrativa plena de sentidos. Enquanto a voz de Gilberto Gil recita "A raça humana é/ uma semana/ do trabalho de Deus" – versos de Raça Humana, de 1984 –, um grupo de seis homens dança à frente do palco e outro de três mulheres, ao fundo. Logo, as figuras femininas saem, e os homens dançam. Depois, um grupo feminino retorna à cena e dança enquanto novamente Gil recita um poema concreto: "Corpo/ Carpa/ Corvo/ Cravo/ Cedro/ Corpo/ Perna/ Braço/ Fauna/ Flora/ Corpo/ Palco/ Pedra/ Preto/ Porco". Segue-se uma coreografia com um grupo misto e, depois, encerra-se a noite com uma fileira de figuras masculinas fazendo o gesto de Xangô na boca de cena. Múltiplas seriam as possíveis leituras, mas sem dúvida fazem refletir sobre o quanto os corpos expressam, em nosso cotidiano, relações e processos marcados pelo masculino e pelo feminino.
Dentre as cenas, o dueto de homens que se vê logo no início da montagem é emblemático. Eles dançam com movimentos que remetem aos de um casal fazendo giros naquela espécie de "enrosca-desenrosca" tão típico do forró. Emerge daí uma possibilidade de desconstrução e reconstrução de uma imagem demasiado fixada em nossa memória visual: a do casal formado tipicamente por homem e mulher para essas danças populares.
E é nesta seara que parece estar a potência maior de um espetáculo como este: oferecer-nos um repertório visual do corpo humano e de seus movimentos que nos ajude a olhar para a minúcia que nestes está contida – mesmo que afastada de movimentos mais acrobáticos, os que em geral chamam atenção dos expectadores.
Assim, abre-se um caminho para entender o peso dessas imagens e, a partir disso, olhar para essa verdadeira linguagem na qual estamos imersos e da qual somos parte integrante. Não há dúvidas: a experiência do Corpo é transformadora para se entender a constituição física humana e seu lugar na construção do que somos.
* Jornalista e crítico