Estendida sobre o chão da fictícia Vila do Meio-Dia, está a bandeira do Brasil tingida de vermelho. Assim como o símbolo nacional, os personagens do espetáculo Gota d’Água {PRETA} sangram. A peça, que é uma releitura da tragédia Gota d’Água, escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes, em 1975, com base na Medeia, de Eurípedes, volta aos palcos reinventada.
Com novas cores, ritmos e focado nos tensionamentos sociais, de raça e de classe, o musical chega ao público enegrecido e transforma a carne negra, que antes era cortada, em navalha. As sessões em Porto Alegre serão sábado (21) e domingo (22), às 18h, no Theatro São Pedro, dentro da programação do 26º Porto Alegre em Cena.
Se nos últimos 40 anos os personagens da trama foram interpretados por artistas brancos, o diretor Jé Oliveira, atento ao texto de Chico e Pontes, que constrói os personagens como periféricos, pobres e praticantes de religião de matriz africana, traz para o enredo o elemento fundante da verdadeira tragédia brasileira: o racismo.
— A nossa tragédia tem endereço e tem cor. E essa cor é preta. Para mim, faltava o fator racial para se tornar uma tragédia brasileira de fato. Não podemos deixar de lado também como as questões de gênero, juntamente com as de classe, operam nesse sistema. Esta peça é interseccional, porque a opressão age firmada nesses três pilares — explica Oliveira, que montou o espetáculo com um elenco majoritariamente negro.
A trama faz um corte transversal nas dinâmicas vividas na favela. Joana (Juçara Marçal), mulher negra, pobre, periférica, de umbanda, mãe de dois filhos, está prestes a ser despejada do conjunto habitacional onde vive. Jasão (Jé Oliveira), seu ex-marido e sambista que galgou a fama, a trocou por Alma, negra mais jovem e de pele mais clara, filha de Creonte, homem branco dono dos imóveis da comunidade e que explora os moradores ao estipular parcelas impraticáveis na aquisição das casas.
Quando o diretor coloca no centro da narrativa o ponto de vista do negro, as relações se transformam. Uma vez racializadas, surgem novas nuanças sobre o texto. A traição de Jasão, por exemplo, vai além da troca da mulher mais pobre pela mais rica. Não se aborda somente a traição amorosa ou a de classe, de um sujeito que aspira à branquidade por meio do poder econômico. Esse ato traz consigo o imperativo de celibato forçado, da escassez de afetividade e da solidão que mulheres negras enfrentam no seu cotidiano.
Atualidade
A montagem paulista foi atravessada pela vontade de renovação na forma como a trama é mostrada, mas o que intrigou e motivou Oliveira a trazê-la de volta foram as semelhanças que o texto escrito na década de 1970 tem com o presente.
— Infelizmente, as aproximações e analogias do período em que a peça foi escrita ficam mais gritantes e evidentes atualmente. Foi oportuno voltarmos a esse texto, porque ele dá conta dos problemas de classe e de raça que vivemos. Nossa crítica ao agora, ao governo eleito, se dá pela amplificação das vozes que são invisibilizadas — pontua.
A reafirmação e a preservação da identidade negra no musical e sua modernidade passam, por sua vez, principalmente, pela audição.
O uso de instrumentos de percussão, a inserção do funkeiro MC Bin Laden em uma das músicas, os samples com canções dos Racionais MC’s, a presença do alabê (tamboreiro) na banda e o ponto de umbanda musicado por Juçara Marçal foram as ferramentas utilizadas para cravar o lugar do qual a história é contada. Todos esses elementos são misturados ao erudito que se faz presente por meio de instrumentos de corda.
A encenação, indicada este ano a melhor espetáculo e direção no prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), afirma o diretor, estraçalha o espectador ao mesmo tempo em que dá fôlego para quem busca a construção de um novo amanhã por meio da mobilização:
— Buscamos ser aconchego para quem está na luta e é simpatizante de questões de raça, classe e gênero. A peça se propõe a refletir a possibilidade de organização da população, que neste momento está fragilizada e desestruturada, mas que pode se fortalecer.
"Gota d’Água {PRETA}"
Sábado (21) e domingo (22), às 18h.
Theatro São Pedro (Praça Marechal Deodoro, s/n°), em Porto Alegre.
Duração: 3h40min (com intervalo). Recomendação etária: 16 anos.
Ingressos de R$ 20 a R$ 80, à venda pelo site uhuu.com/poa-em-cena, na bilheteria oficial no Shopping Total (Av. Cristóvão Colombo, 545, 2º piso, em frente às escadas rolantes) e, havendo disponibilidade, no teatro, uma hora antes das sessões.