Nome representativo do teatro contemporâneo, o artista franco-uruguaio Sergio Blanco terá seu trabalho exibido em duas peças no 26º Porto Alegre em Cena. As Flores do Mal (quinta, dia 12, às 20h, no Teatro da Santa Casa) é uma conferência autoficcional envolvendo os temas da violência e da literatura com atuação do próprio Blanco, enquanto A Ira de Narciso (sábado, dia 14, e domingo, dia 15, às 19h, no Teatro da PUCRS) é uma montagem paulista com o ator gaúcho Gilberto Gawronski sobre a estadia de um autor na Eslovênia. Nesta entrevista, concedida por e-mail, Blanco fala sobre os dois espetáculos e sobre seu processo de criação.
Quais são as relações entre literatura e violência desenvolvidas em As Flores do Mal?
A literatura começou desde criança, quando fui me maravilhando com as primeiras leituras de Julio Verne, Kipling, Dickens, Quiroga. Logo descobri que havia algo muito mais interessante do que a realidade, e isso se chamava literatura. E essa literatura vinha suspender a realidade entediante e chata, e sobretudo vinha suspender todo juízo de valor. No que diz respeito à violência, é algo que também me interessa desde criança porque meu corpo sempre esteve habitado pela violência. Desde pequeno, a violência exerceu em mim um profundo rechaço e ao mesmo tempo uma grande fascinação. Nesta conferência autoficcional, trabalho com dois temas que me são muito próximos e que me interessaram desde sempre. A literatura e a violência têm uma relação profunda: todos os grandes textos da literatura universal abordam o tema da violência porque justamente na literatura podemos ensaiar e provar essa violência que nos é tão necessária, pois forma parte de nossa condição humana. Faz bem a todos nós contemplar a violência no plano da ficção, ou seja, fora do real, onde a violência é insuportável e destrutiva.
O senhor é conhecido por seu trabalho com a ideia de autoficção, uma mistura de autobiografia e invenção. De que maneira ela está presente nos seus trabalhos?
A autoficção é esse gênero em que venho trabalhando há alguns anos e que consiste em cruzar relatos da vida real com relatos inventados. O resultado é um texto em que a verdade e a mentira começam a ser uma mesma coisa. Isso é fascinante: perder o limite ou a fronteira do que é real e do que é ficção. Logo, não há mais fronteira. Tudo se confunde em um mesmo todo. Acredito que o que mais me atrai nisso é que as coisas sejam e não sejam ao mesmo tempo. De alguma maneira, como na fórmula hamletiana de "ser ou não ser?", gosto de responder que é possível "ser e não ser" ao mesmo tempo. Nesta conferência, tive a ideia de começar a misturar por um lado o discurso acadêmico que responde a máximas de clareza, precisão, verdade e, por outro lado, o discurso literário, que reponde a máximas opostas, ou seja, imprecisão, confusão e mentira. São dois discursos opostos e antagônicos, e gostei da ideia de que se fundissem em um único e que esse discurso fosse de alguma forma o meu corpo. E então decidi chamar esse resultado de "conferência autoficcional" porque vou abordando um tema de forma científica e acadêmica, mas ao mesmo tempo vou mesclando com minha própria experiência pessoal, em que vou falando de temas íntimos e privados, muitos verdadeiros e outros inventados.
Pertencer a dois países, duas culturas, duas línguas, finalmente é não pertencer a nenhum deles. E isso é muito libertador.
SERGIO BLANCO
De que maneira a experiência de estar entre o Uruguai e a França afeta o seu trabalho?
Acredito que essa mescla de ser franco-uruguaio contribuiu muito para que eu me entenda tão bem com a autoficção. Quando uma pessoa é binacional, no fundo não tem nacionalidade alguma. Por sorte! E quando se é bilíngue, ocorre o mesmo, termina-se não tendo língua alguma. E isso também é uma sorte. Pertencer a dois países, duas culturas, duas línguas, finalmente é não pertencer a nenhum deles. E isso é muito libertador. Com a autoficção ocorre o mesmo, termina-se sem pertencer nem à realidade, nem à mentira. E então o campo de liberdade é enorme.
A Ira de Narciso é outra montagem com texto seu que estará no festival, com o ator brasileiro Gilberto Gawronski. Há algo que liga os dois trabalhos?
Esses dois textos têm muito em comum. Não apenas são duas autoficções como são dois textos que falam dessa violência que tem dentro de todos os seres humanos. Algo que achei extraordinário nesta montagem brasileira é a maneira maravilhosa em que a diretora Yara de Novaes apresenta a violência sem descuidar em momento algum da beleza. É como se ela nos mostrasse que a violência e o prazer são dois fenômenos que às vezes podem ir juntos. E mais fascinante ainda é o trabalho magistral de Gilberto Gawronski, que faz com que essa beleza e essa violência se encontrem em seu corpo. Nesta montagem, Gilberto agarra os espectadores e os leva ao mais profundo do texto. E as pessoas o seguem porque não podem dizer não a tanta beleza, a tanta ternura. Todos o seguimos até o nono círculo do inferno com um desejo cada vez maior. Como pode ser tão genial! Nunca havia visto um ator como ele. Quando o vi, esqueci que era eu quem havia escrito o texto. Isso nunca havia acontecido comigo, e vi mais de 60 montagens de diferentes peças minhas. Essa foi a primeira vez que esqueci de mim, e isso apenas Gilberto conseguiu alcançar. Essa é a arte do ator: que nos faça esquecer de quem somos. O grande ator não apenas deixa de ser ele, mas produz algo nos espectadores para que também deixem de ser eles. O grande ator é um interruptor de identidade. Gilberto é o mais próximo que vi da beleza sublime do ator em todo o seu esplendor.
O grande ator não apenas deixa de ser ele, mas produz algo nos espectadores para que também deixem de ser eles. O grande ator é um interruptor de identidade.
SERGIO BLANCO
A cena contemporânea às vezes é compreendida como um "vale tudo". Nesse universo de possibilidades, como o senhor descreve seu teatro?
Não sei descrever muito o meu teatro. Deixo e prefiro que os outros o façam. Em todo caso, estou convencido de que esse caráter de "vale tudo" é fundamental para a criação. A arte é um espaço em que não há leis, regras ou códigos. Cada um deve poder criar a seu modo e como tenha vontade. Émile Zola dizia algo bonito: "Não deve haver escola, nem fórmula, nem pontífice de espécie alguma; existe apenas a vida, um campo imenso em que cada um pode estudar e criar a seu modo". Que cada um faça o que queira, do contrário a arte deixa de ser arte e se transforma em outra coisa. O espaço de criação tem de ser infinito e sem qualquer tipo de aiatolá ou comissário que estipule como deve ser a criação. Em um palco, tudo é possível? Sim, claro, tudo. Absolutamente tudo tem de ser possível. Isso é o que o transforma em um espaço maravilhoso e necessário para nossa sociedade: vamos ao teatro porque na cena há uma suspensão de toda regra, de toda legislação e de toda moral. É um espaço de liberdade como nenhum outro.
Quais são as suas memórias do teatro na infância?
Comecei a entrar no mundo do teatro desde muito criança: gostava de deixar de ser o que eu era para tentar ser outra coisa. Sempre detestei o peso do real. Sempre me atraiu o que não sou eu, o que não é. Tanto os artistas, que estamos deste lado do palco, quanto os espectadores, todos nos encontramos no acontecer teatral para deixar de ser. Comecei a experimentar tudo isso desde muito pequeno. "Ser" é insuportável. É muito melhor "não ser".
"Estou convencido de que esse caráter de "vale tudo" é fundamental para a criação. A arte é um espaço em que não há leis, regras ou códigos.
SERGIO BLANCO
O senhor conhece a cena teatral brasileira?
Não a conheço como deveria, mas pouco a pouco vou começando a conhecer cada vez mais. Meu grande mestre foi um brasileiro: o grande (diretor teatral) Aderbal Freire-Filho. Fui seu assistente em meados dos anos 1990, quando ele ia ao Uruguai dirigir a Comédia Nacional. Devo muito à sua pessoa. Foi um grande mestre, com quem aprendi muito. Sua inteligência, sua sensibilidade, sua fúria, sua paixão, seu humanismo foram coisas fundadoras para mim. Por meio dele, fui acessando uma zona do teatro que para mim era desconhecida. Aprendi em português várias das primeiras palavras do mundo do teatro porque muitas vezes ele as dizia em sua língua, e logo buscávamos a equivalente em espanhol.
Sergio Blanco no 26º Porto Alegre em Cena
As Flores do Mal (Uruguai)
Texto, direção e atuação: Sergio Blanco.
Nesta quinta-feira (12), às 20h, no Centro Histórico-Cultural Santa Casa (Av. Independência, 75).
A Ira de Narciso (São Paulo)
Texto: Sergio Blanco. Direção: Yara de Novaes. Atuação: Gilberto Gawronski.
Sábado (14) e domingo (15), às 19h, no Teatro da PUCRS (Av. Ipiranga, 6.681, prédio 40 da universidade).
Os ingressos para cada um desses espetáculos custam R$ 80 e estão à venda pelo site uhuu.com/poa-em-cena (com taxa) e na bilheteria oficial no Shopping Total (Av. Cristóvão Colombo, 545, 2º piso, em frente às escadas rolantes). Havendo disponibilidade, os ingressos serão vendidos nos respectivos teatros, uma hora antes do início da sessão.