A cena cultural de um Estado tem uma face mais visível — os artistas que aparecem nos teatros, nos filmes e nos shows — e outra nem sempre evidente para o público — os produtores e técnicos que atuam nos bastidores.
Mas há uma terceira classe de personagens que fazem a roda da cultura girar e que são tão fundamentais quanto os anteriores: os mediadores, que agem como uma “cola” — amálgama seria uma palavra mais sofisticada — ligando os artistas às oportunidades, incentivando novos talentos, divulgando a cultura de diversas formas e participando da cena porque amam. Para isso não há faculdade, é vocação.
Só que nem sempre aparecem mediadores como Alice Urbim, que terá suas quatro décadas de dedicação à cultura reconhecidas com o título de madrinha do 26º Porto Alegre em Cena, festival com início nesta terça (10) em diferentes espaços de Porto Alegre. A deferência é concedida anualmente a uma personalidade que faz parte da história do evento.
O engajamento e o entusiasmo de Alice com a produção local são exemplares. Muitos projetos relevantes prosperaram em função do apoio e da parceria que ela oportunizou. Alice Urbim é demais.
LUCIANO ALABARSE
Diretor de teatro e secretário da Cultura da Capital
Desde que começou a cobrir a cena cultural para o extinto Jornal Hoje, no final de 1974, Alice foi repórter, divulgadora, produtora e figura respeitada no meio. Recentemente, deixou o cargo de gerente-executiva de Programação e Entretenimento da RBS TV, encerrando uma jornada de mais de 20 anos na empresa, entre idas e vindas. É o início de uma nova fase em sua vida, que ela já tem toda planejada — detalhes daqui a alguns parágrafos.
Alice tinha uma aguardada viagem a Nova York programada quando foi convidada para ser a madrinha do Em Cena. Ficaria fora durante parte do evento. Mas não queria estar apenas parcialmente presente no festival e tampouco cogitava recusar o convite. Mexendo uns pauzinhos, as férias ficaram para depois:
— Quando o Luciano (Alabarse, secretário municipal da Cultura) e o Zugno (Fernando Zugno, coordenador-geral do festival) me convidaram, fiquei extremamente emocionada. O Em Cena representa tanto do que eu acho que temos que fazer com a cultura da cidade que me senti completamente honrada.
Bibliotecas
Filha dos funcionários públicos Ildo Natalino e Carmen Julia, ambos com 94 anos, Alice é uma habituée da cultura desde criança. Concertos, peças infantis e outras atrações eram estimuladas desde cedo. Mas biblioteca, biblioteca de verdade, a casa não tinha. Frequentava, então, o frondoso acervo da tia-avó Maurilia.
— A primeira coisa que apareceu na minha frente foi a coleção do Monteiro Lobato. A tia me deixava colocar tudo no chão. Minha lembrança, em plongée (enquadramento de cima para baixo, no cinema), é eu espichada no tapete com um monte de livros ao redor, ela lendo as histórias para mim, e eu descobrindo toda aquela fantasia.
A biblioteca era o país das maravilhas para Alice. Uma que frequentou de travessura foi a do então Grupo Escolar Marechal Floriano Peixoto, onde estudou.
Certa vez, descobriu que duas colegas gêmeas não precisavam ir na igreja porque eram evangélicas. Enquanto as outras rezavam, elas esperavam... na biblioteca da escola. Foi então que a pequena Alice teve a ideia de dizer — mentir seria a palavra correta — para a professora que era evangélica apenas para ficar entre os livros.
Deu tudo certo, até que a mãe descobriu o esquema em uma reunião de pais. Depois do carão, uma coisa terminou bem: dona Carmen pegou livros emprestados da tia Maurilia para Alice ter em casa.
Uma vida dedicada à divulgação da cultura
Alice Urbim começou a se tornar uma figura onipresente na cena cultural gaúcha nos anos 1970, quando ela, então aluna da Faculdade de Comunicação da PUCRS (Famecos), ingressou no Jornal Hoje, extinto vespertino da RBS. Ao retornar de sua primeira pauta, sobre saúde, um editor bem-intencionado recomendou que tentasse a editoria de Cultura. E foi assim que Alice passou a conviver com os personagens mais fascinantes em um momento de pujança da cultura gaúcha e brasileira, época do faça você mesmo e da resistência à ditadura.
— Participar da editoria de variedades era a coisa mais legal do mundo. Ali comecei a conhecer as pessoas que produziam cultura. Descobri o Teatro de Arena de Porto Alegre, Jairo de Andrade, Marlise Saueressig, Carlinhos Hartlieb. E vi que era superimportante.
Na editoria de Cultura do concorrente Folha da Manhã trabalhava um certo Carlos Urbim, professor de Alice na Famecos. A coincidência os uniu, e passaram a frequentar as atividades culturais juntos. Casaram-se depois da formatura dela e se tornaram um par icônico dos agitos culturais da província nas décadas seguintes. Urbim (o Carlos) começou a escrever literatura infantojuvenil quando os filhos, Emiliano e Glauco, eram pequenos. Depois da morte de Urbim, em 2015, aos 67 aos, Alice tornou-se a sucessora de sua obra.
— Acho bonito isso: sucessora. Escritor não morre. Toda hora tem pedido de editora querendo colocar um poema dele em um livro didático, toda hora estou assinando algum papel. Mas nunca fui a mulher que estava atrás daquele cara. Ele sempre me mostrava as coisas prontas, eu não era a primeira leitora. E nunca fui escritora.
Mas quis ser atriz. Chegou a fazer teatro na época do Normal, mas a família não via com bons olhos. Então, encontrou outras formas de viver o teatro. Foi divulgadora, com carteira assinada, do Teatro Novo, de Ronald Radde. Depois, abriu a Viva Produções em parceria com Ligia Walper. Estamos já nos anos 1980.
A empresa divulgava os espetáculos de alguns dos principais grupos de Porto Alegre e fazia apoio à produção local das peças que vinham de Rio e São Paulo. O cinema também entrou no portfólio. Além de divulgar produções nacionais, coube à produtora o plano de marketing de filmes gaúchos como Verdes Anos (1984), de Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil.
Alice viria a se tornar uma embaixadora do audiovisual gaúcho na RBS TV como responsável, ao lado de Gilberto Perin, pelo programa Curtas Gaúchos, aos sábados, que contou com séries como Histórias Curtas.
— A ideia do Curtas Gaúchos surgiu de uma provocação do Raul Costa Júnior, que era diretor de Jornalismo e Entretenimento. Ele chamou ao Perin e a mim e disse que queria fazer produções locais — lembra Alice.
O projeto iniciado em 1999 pelo Núcleo de Programas Especiais da RBS TV exibia curtas já prontos, como Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, e produziu outros tantos. Levando o audiovisual gaúcho para a televisão aberta, o Curtas Gaúchos acabou divulgando antigos e novos talentos para além do Estado:
— O pioneirismo do negócio foi incrível. Eu e o Perin apresentávamos o case em festivais de audiovisual no Brasil inteiro, e as pessoas não acreditavam que tínhamos isso no sul do Brasil.
Planos
Em sua diversificada carreira, não foram poucas as vezes em que Alice recomendou a algum figurão da Rede Globo ou do teatro do eixo Rio-São Paulo ficar de olho nos talentos gaúchos. Gilberto Perin, ex-diretor do Curtas Gaúchos, afirma:
Pelo seu caráter e talento, ela tem sensibilidade, informação, proximidade da comunidade cultural e disposição constante de conhecer, aprender e entender as relações e tendências do audiovisual.
GILBERTO PERIN
Jornalista e fotógrafo
— Pelo seu caráter e talento, ela tem sensibilidade, informação, proximidade da comunidade cultural e disposição constante de conhecer, aprender e entender as relações e tendências do audiovisual.
Luciano Alabarse, diretor de teatro e atual secretário de Cultura de Porto Alegre, acrescenta:
— O engajamento e o entusiasmo de Alice com a produção local são exemplares. Muitos projetos relevantes prosperaram em função do apoio e da parceria que ela oportunizou. Alice Urbim é demais.
Avó de dois netos, Alice agora projeta mais tempo para a família. Na nova fase, quer se dedicar a projetos de consultoria e curadoria e tem o plano de se especializar em coach de carreira:
— Fiz isso na minha vida inteira. As pessoas chegavam na porta da minha sala e diziam: “Sou a ficha 3!”. Sempre quis que as pessoas se dessem bem na vida, que participassem do melhor momento de suas carreiras.
26º Porto Alegre em Cena
- De 10 a 23 de setembro, em diferentes espaços culturais de Porto Alegre
- Ingressos: de R$ 10 a R$ 80, dependendo do espetáculo.
- Pontos de venda: site uhuu.com/poa-em-cena (com taxa), bilheteria oficial no Shopping Total (Av. Cristóvão Colombo, 545) e Centro Municipal de Cultura (Av. Erico Verissimo, 307, apenas em noites de espetáculos neste local).
- Outras informações: site portoalegreemcena.com.