Uma apresentação teatral foi interrompida por uma sequência de óperas tocadas em alto volume ao lado de um espaço cultural no bairro Santana, em Porto Alegre, na noite de sábado (22). A peça A Mulher Arrastada, vencedora dos prêmios Açorianos e Braskem de 2018, precisou ser paralisada devido à interferência promovida, segundo relatos, por uma caixa de som disposta ao lado do teatro.
O Estúdio Stravaganza, com lotação máxima de 60 pessoas, fica localizado em uma antiga garagem no térreo de um edifício residencial. A casa de máquinas do prédio tem uma janela com saída direta para o teatro. A apresentação, com casa cheia, começou às 20h e tinha previsão de término às 20h40min.
A Mulher Arrastada aborda a morte da auxiliar de serviços Claudia Silva Ferreira, aos 38 anos, que morreu baleada durante operação da Polícia Militar no Morro da Congonha, no Rio de Janeiro, em 2014. Ela havia saído de casa para comprar pão para alimentar os quatro filhos e quatro sobrinhos. Os policiais colocaram o corpo da mulher no porta-malas de uma viatura, mas a porta abriu durante o trajeto – Claudia foi arrastada pelo asfalto por cerca de 350 metros. As cenas foram exibidas em vídeo amador divulgado pela imprensa na época.
Segundo relatos, logo após o início da apresentação no sábado, um som de ópera ecoou pelo espaço e abafou a trilha sonora do espetáculo. De início, técnicos de som correram para buscar um problema técnico – seria um vazamento na caixa de som? A resposta veio logo em seguida: a ópera vinha de uma janela que desembocava na casa de máquinas do edifício.
O barulho chocou a produção: ninguém jamais havia deparado com situação semelhante. O autor da peça, Diones Camargo, afirma que o som retumbava diretamente onde o público se sentava. Os atores começaram a gritar para se fazerem ouvir.
— A fruição da peça acabou prejudicada. Sem dúvida, foi uma retaliação, porque os vizinhos não concordam com o uso do espaço para atividades culturais. Entrei em cena, pedi desculpas ao público e aos atores e afirmei que cancelaríamos a peça, oferecendo reembolso ou uma apresentação extra neste domingo. Mas o público teve uma reação maravilhosa, entrou em consenso de que a peça deveria continuar para confrontarmos esse comportamento — descreve Camargo.
Presente na apresentação, o secretário de Cultura de Porto Alegre, Luciano Alabarse, escreveu em texto opinativo para Zero Hora que "Porto Alegre tem testemunhado, e não é de hoje, violentos ataques à livre expressão artística. (...) Sábado, na plateia do Estúdio Stravaganza, fui testemunha de mais uma deprimente manifestação contra o teatro gaúcho", diz. O texto é intitulado A peça que venceu o ódio dos vizinhos.
Responsável pelas políticas públicas em cultura na Capital, Alabarse sublinhou que a apresentação começou às 20h do sábado, "nada que fira o código de silêncio ou boa educação para com a vizinhança". Em seguida, relacionou a atitude ao momento político brasileiro: "O que se viu, no entanto, foi mais um exemplar momento da barbárie que se alastra no país. Incomodados com o uso artístico do espaço, para acabar com a apresentação, vizinhos ligaram uma trilha operística em volume ensurdecedor", acrescentou.
O Estúdio Stravaganza existe desde 1998 em um espaço que, anteriormente, era a garagem de um edifício localizado no bairro Santana. O prédio não tem porteiros e a reportagem não localizou nenhum morador para comentar o ocorrido.
Dona do espaço e diretora da peça, Adriane Mottola reconhece que algum som vaza do local e que já recebeu reclamações dos vizinhos por barulho, mas afirma que toma medidas para reduzir o incômodo.
— O espaço existe há 20 anos e a gente sabe que precisa ter cuidado. Fazemos apresentações curtas, de no máximo três dias. Além disso, a peça tinha 40 minutos e foi às 20h de um sábado. Isso nunca aconteceu antes — relata.
GaúchaZH foi à última apresentação da temporada em Porto Alegre, neste domingo (23). A peça começou às 18h10min e terminou às 18h55min. Não houve qualquer transtorno.
Mas a companhia teatral, ressabiada com o confronto do dia anterior, forrou com tapetes a janela com saída para a casa de máquinas. Ao fim da performance, a equipe técnica comemorou a ausência de transtornos – o músico responsável pela trilha sonora, que passou por apuros no sábado, chegou a chorar de alívio.
Após os aplausos, a atriz Celina Âlcantara, que encena a auxiliar de serviços Claudia Silva Ferreira, afirmou que o público presente "pôde fruir da apresentação como ela é", ao contrário de quem estava no mesmo local, no dia anterior.
— Ontem (sábado), tivemos um episódio lamentável de censura da vizinhança. Quiseram censurar este espaço e esta apresentação. Vivemos um momento em que querem calar a arte e a educação, formas de ensinar a pensar para além de viver para ganhar dinheiro. Obrigada à direção, à produção e à equipe técnica pela resistência — discursou a atriz.
A peça estreou em maio do ano passado e teve montagens em Santiago (Chile), São Paulo e Rio de Janeiro. Agora, o espetáculo está em circuito de apresentações em 28 cidades no Brasil – as próximas cidades são Belo Horizonte, Uberlândia (MG), Manaus e Brasília.