Por Marcelo Ádams *
Em um vídeo projetado no palco montado às margens do Guaíba, viu-se a imagem do poeta Luiz Coronel dando um depoimento acerca da importância do mito da Revolução Farroupilha para o ideário gaúcho. É sabido que o heroísmo associado à figura dos revolucionários farroupilhas eleva a autoestima de muitos a cada setembro, quando da celebração dos controvertidos eventos ocorridos entre 1835 e 1845.
O que captou minha atenção na fala de Coronel, autor da obra que embasou o espetáculo Revolução Farroupilha, uma História de Sangue e Metal, foi sua proposição para que olhemos aquele momento decisivo de nossa história com olhos do passado, e não com olhos contemporâneos, o que, antes de tudo, é uma impossibilidade física e filosófica. Não se trata de ignorar a necessária contextualização de fatos históricos, mas é difícil concordar pacificamente com a sugestão de Coronel de, quem sabe, relevar os excessos daqueles tempos – segundo ele, resultado do espírito de uma época, no rastro da Revolução Francesa.
Quem não pensa como Coronel e é adepto da ideia de hermenêutica do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, reconhece que é romântica a tal História a ser "desvendada", como se estivesse tudo intacto esperando por nós. Talvez seja o caso quando se encontra uma múmia ou uma ossada, mas em relação aos "movimentos" da sociedade não se pode olhar para o passado como se fosse uma fotografia.
Gadamer afirma que entender acontecimentos de uma época anterior não implica compreender melhor, mas compreender diferente. Sua ideia de fusão de horizontes defende que se cruzam, numa inextricável rede, o conhecimento histórico factual e o que me chega à luz do momento histórico em que hoje me encontro. Uma história efeitual seria, portanto, um em-processo de todas as interpretações de um fato – no caso, a Revolução Farroupilha –, feitas desde seu grau zero, que afetaram e continuarão afetando minha compreensão da História.
Reconhecimento aos Lanceiros Negros
O evento multiartístico, com direção-geral de Clóvis Rocha, demonstrou uma visão efeitual da História. A concepção do espetáculo, que se afastou da criticada ideia original de produzir uma ópera-rock, se embrenhou por variados ritmos musicais, o que certamente enriqueceu a experiência, dado que em nosso Estado seria redutor eleger apenas um gênero. A trilha sonora dinamizou a sucessão de quadros temáticos que procuraram traçar um panorama não exaustivo do que foi a Revolução Farroupilha. A proposta da encenação foi dividir o conjunto de ações fragmentárias em cinco partes, cada uma tendo o protagonismo de pelo menos uma expressão artística: dança, circo, teatro, música e audiovisual.
Quem foi assistir ao espetáculo esperando uma narrativa linear não foi atendido, o que considero um ponto de destaque. É possível representar uma guerra com danças urbanas, tecido acrobático e referências às danças de orixás? Se pensarmos não na ideia de representação realista, mas em sugestão, em impacto sensorial provocado por movimentos, luzes e sons, o resultado é uma quase sempre bem resolvida narrativa, ainda que talvez fosse bem-vinda uma alternativa ao caráter invariavelmente episódico da encenação. Por um lado, à moda brechtiana, se ganha em atenção crítica; por outro, há risco de certo distanciamento emocional. Se a representatividade das artes foi um ponto forte, fiquei imaginando como seria se, em vez de resolver cada ponto narrativo com uma das artes (a desavença inicial dos revolucionários com o império, os combates, a história dos Lanceiros Negros, as mortes e as perdas da guerra e o ideal gaúcho contemporâneo), se optasse por uma transdisciplinaridade entre elas.
E por falar em trans, foi lindo ver a cantora Valéria em papel de destaque, exercendo lindamente sua arte. Também emocionante o reconhecimento aos Lanceiros Negros, caso emblemático de um olhar contemporâneo para esses guerreiros esquecidos durante tanto tempo. É graças a esse olhar, que vai com calma na idealização de um passado glorioso, que podemos hoje reconhecer quem deu a vida por um ideal.
* Ator, doutor em Teatro e professor da graduação em Teatro – Licenciatura da UERGS