Por Elder Patrick Maia Alves
Responsável pelo mapeamento da cadeia produtiva das artes cênicas no país pela Universidade Federal de Alagoas
É imperativo pesquisar a cadeia produtiva das artes cênicas no Brasil. Ela tem impacto direto na economia cultural das cidades, afetando serviços de alimentação, transporte, hospedagem e o turismo em geral.
Cinco elos compõem essa cadeia: produção, criação, apresentação, circulação e fruição. Diferentemente de outros mercados culturais que, nos últimos 20 anos, passaram a ser mapeados, conhecemos quase nada da cadeia das artes cênicas no país e seus principais obstáculos. Em linhas gerais, até o estágio atual do conhecimento acumulado, é possível delimitar dois gargalos, um de ordem organizacional-tecnológica, que ultrapassa os limites da realidade do país, outro socioeconômico, atinente às especificidades da estratificação social brasileira. Ambos estão umbilicalmente ligados.
O primeiro atravessa toda a cadeia, mas se revela mais contundente nos elos de apresentação e circulação. Por mais que os conteúdos teatrais, de dança e de circo tenham sido mais e melhor consumidos nos últimos 10 anos no Brasil, sendo integrados em redes estratégicas, como o Observatório dos Festivais de Teatro, a forma contemporânea mais eficaz de circulação da cultura tem sido por meio da conversão em serviços culturais digitais. Esse é ainda um desafio para os profissionais da área em todo o mundo, uma vez que os conteúdos cênicos se referem a linguagens marcadas pela densidade estética do ato in loco. De outro lado, mesmo a simples dinamização de aspectos organizacionais permitidos pelas tecnologias digitais tem sido pouco aproveitada pela cadeia das artes cênicas. No Brasil, só 23% dos teatros vendem ingressos pela internet e 58% não têm website. Apenas 10% das oficinas são oferecidas online.
O gargalo organizacional-tecnológico remonta à origem das linguagens cênicas, pouco afeitas aos aspectos empresariais. Ocorre que, diante das mudanças tecnológicas, tornou-se imperativo olhar para esses aspectos. É nesse sentido que surgiu uma iniciativa alvissareira, que tem contribuído para mitigar tal gargalo no Brasil: o Intercena, projeto coordenado pelo gaúcho Alexandre Vargas. Lançado em dezembro de 2017, com apoio do Ministério da Cultura e da Secretaria de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer do RS, e patrocínio da Braskem, o Intercena é um projeto continuado, destinado à capacitação dos trabalhadores das artes cênicas, com o olhar direcionado à internacionalização da produção cênica gaúcha. Culminará com a realização de um evento em Porto Alegre, no fim deste mês, e pretende dinamizar aspectos como as rodadas de negócios, a gestão de festivais e o conhecimento das interfaces econômicas das artes cênicas.
O segundo gargalo, este sim mais complexo, diz respeito à incorporação – desde a infância – de mecanismos cognitivos, emocionais, estéticos e artísticos que permitam construir uma sensibilidade para teatro, dança e circo. Esse processo depende da criação de estruturas de oportunidades, como a incorporação de conteúdos cênicos nos currículos escolares, o contato permanente – na família, na escola e nas relações ampliadas – com shows e espetáculos, além de contações de histórias e formas de musicalização. Todos esses aspectos vicejam, a médio e longo prazos, o interesse pelas artes cênicas, construindo as estruturas de sensibilidade que marcam os indivíduos.
Embora esse processo seja complexo, as novas tecnologias podem contribuir. As artes cênicas, sobretudo o teatro, têm atraído os jovens. Segundo o Datafolha, em 2017, 32% dos brasileiros entre 16 e 24 anos afirmaram ter ido ao teatro ao menos uma vez por ano, e 30% da faixa etária entre 25 e 34 anos disseram que foram ao menos uma vez ao teatro no último ano. Essa frequência diminui à medida que se eleva a idade: 62% dos frequentadores de teatro, no Brasil, têm entre 16 e 34 anos – justamente a faixa que mais usa a internet.
Um dado acerca do mercado da música pode ser útil para ilustrar as interfaces envolvendo os dois gargalos e as novas tecnologias. Em 2017, a indústria da música gerou uma receita global de US$ 15,7 bilhões, ficando os suportes físicos (CDs e DVDs) com 34%, os conteúdos digitais, com 50%, e os shows, com 14%. Em 2009, os shows não representavam praticamente nada nesse bolo. Ou seja, conforme aumentou o consumo musical digital (nas plataformas on demand), cresceu o interesse pelos shows. Aumentou o desejo da experiência ao vivo, in loco.
Resta saber se, assim como no mercado musical, uma coisa leva à outra também no âmbito das artes cênicas. Para saber, são necessárias duas medidas: que esse mercado aprimore seus aspectos organizacionais e tecnológicos e que existam mapeamentos desse mercado, sua cadeia produtiva e seus gargalos correspondentes. Em ambas as medidas, o Intercena já tem contribuído.