Este foi um fim de semana inesquecível para Porto Alegre: uma ópera foi encenada na cidade, e isso aconteceu no Theatro São Pedro, com a Ospa ocupando o fosso destinado à orquestra. Há mais de três décadas uma parede impedia que conjuntos maiores estivessem naquele lugar e limitava o repertório. A escolha da peça para este momento foi um acerto: Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart, que agrada espectadores iniciantes e experientes. Já na entrada, um prenúncio de que a cultura operística tem recebido mais atenção na Capital: o programa distribuído a quem entrasse era mais robusto e cuidadosamente elaborado do que o distribuído na apresentação operística do mesmo conjunto no ano passado.
Uma das coisas que tornaram o momento ainda mais interessante foi a boa execução musical do conjunto orquestral, sob a regência de Evandro Matté. Ainda, a competente concepção visual do espetáculo – enxuta, mas precisa – colaborou para que a experiência se tornasse mais intensa. A trama que trata do conquistador espanhol Don Juan foi posta, por opção do diretor cênico Caetano Pimentel, em espaço e lugar indefinidos. Talvez para nos alertar de que elementos do libreto original do século 18 ainda nos perseguem em 2017. Temos custado a superar a violência contra as mulheres e mesmo o olhar da sociedade para elas como objeto sexual.
Ainda que os cenários fossem relativamente simples – não por isso menos eficientes –, o aproveitamento do espaço e o posicionamento dos atores-cantores em muitos momentos operou com tal potência que o palco parecia pleno. Há que se enfatizar um maior cuidado com a iluminação – problemática em muitos casos. Em Don Giovanni, foi tão bem planejada que era quase imperceptível, mas dava conta de criar os climas necessários às cenas.
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Também os figurinos foram bem escolhidos: bonitos e bem feitos, dialogavam com traços dos personagens. O do protagonista foi exemplar: entre os homens da história, era o único feito com um tecido que continha pequenos pontos brilhantes, que reluziam sob a luz. Era, pois, um recurso sutil, mas que o destacava do conjunto masculino. Apenas no primeiro ato alguns dos vestidos usados por personagens femininas destoavam dos demais: pareciam roupa cotidiana de trabalho, sem muita elaboração.
Sendo essa ópera uma comédia, as gargalhadas da plateia eram a prova concreta de que tudo ali estava funcionando bem. Nesse sentido, merecem destaque as atuações: o elenco dava mostras de bastante entrosamento e oferecia cenas divertidas e convincentes. Homero Velho, no papel título, tinha um ar canastrão que lhe caía muito bem. Carla Cottini, como Zerlina, tinha os traços de uma diva: roubava a cena com seu canto e com sua presença marcante. Mas foi quando o comendador voltou à cena no final do segundo ato que o impacto foi maior: Sávio Sperandio reapareceu como uma estátua que ganha vida – ele fora assassinado no começo do enredo. Com um canto muito vibrante, deu um fecho memorável ao espetáculo.
Num ano em que alguns dos principais teatros brasileiros passam por fases difíceis, esta iniciativa da Ospa – que se segue a uma boa montagem de Don Pasquale, de Gaetano Donizetti, no ano passado – é motivo de alegria para o público porto-alegrense. Resta-nos otimismo e a expectativa para ver o que a orquestra nos trará em 2018; esperamos, ainda, que o conjunto não demore a reapresentar essas duas óperas que já nos fizeram chegar.
*Everton Cardoso é jornalista e crítico