Por Marcus Mello (*)
Nada mais apropriado do que encerrar a 48ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com Megalópolis, nova e muitíssimo aguardada stravaganza fílmica de Francis Ford Coppola, que teve sua primeira exibição pública no Brasil após a cerimônia de premiação do megaevento cinematográfico que movimentou a capital paulista entre os dias 17 e 30 de outubro. Se o filme desapontou boa parte do público presente à Cinemateca Brasileira na concorrida noite de encerramento da Mostra (o que vem se repetindo mundo afora, diga-se), o mesmo não se aplica em relação à calorosa recepção dirigida a Coppola, tratado como superstar durante sua breve estada em São Paulo. O homem por trás de obras-primas da estatura da trilogia O Poderoso Chefão, A Conversação, Apocalypse Now e O Fundo do Coração recebeu das mãos de Renata de Almeida, diretora da Mostra, o Troféu Leon Cakoff por sua trajetória artística, sob ovação da plateia, que contou com a presença de colegas de ofício como Walter Salles, Mohsen Makhmalbaf e Fernando Meirelles. Dias antes, sempre cercado por seguranças, o poderoso Coppola ministrou uma master class no Teatro B32, concedeu diversas entrevistas e foi flagrado pelo autor deste relato adentrando com sua entourage na churrascaria Fogo de Chão, em plena Rua Augusta. Se o maestro aprovou a picanha, não sabemos. Já eu, ao contrário de muitos, embarquei completamente na delirante farsa alegórica construída pelo diretor, que tem, entre seus momentos de brilho, ao menos uma sequência de antologia, o atentado contra o protagonista interpretado por Adam Driver.
Como costuma acontecer a cada ano, o prestígio internacional da Mostra se traduziu uma vez mais na presença de filmes premiados nos principais festivais de cinema do mundo, exibidos pela primeira vez em solo brasileiro. Anora, de Sean Baker (Palma de Ouro no Festival de Cannes), Dahomey, de Mati Diop (Urso de Ouro no Festival de Berlim), Memórias de um Caracol, de Adam Elliot (vencedor do Festival de Animação de Annecy), O Banho do Diabo, de Veronika Franz e Severin Fiala (vencedor do Festival de Sitges), são alguns dos títulos que atraíram a atenção do público por suas credenciais de premiação festivaleira. A eles se juntam uma penca de novas produções assinadas por figuras incontornáveis (para o bem e para o mal) do cinema contemporâneo: Jia Zhang-ke, David Cronenberg, Amos Gitai, Leos Carax, Miguel Gomes, Hong Sang-soo, Alain Guiraudie, André Téchiné, Lav Diaz, Pablo Larraín, Tsai Ming-liang... O cinéfilo de perfil mais conservador e menos destemido acaba fatalmente norteando suas escolhas a partir desse critério, ao montar sua grade de programação. Em nove dias de Mostra, consegui assistir a 28 filmes (uma média de três por dia, o que é pesado, mas possível). Outros 370 foram deixados de lado. Entres eles, poucos os arrependimentos.
O melhor de todos foi Levados pelas Marés, novo Jia Zhang-ke, realizado a partir de imagens não utilizadas de seus outros filmes, justamente reconhecido com o prêmio da crítica. O chinês retoma a trama Em Busca da Vida (2006), acompanhando os últimos 20 anos da história da China através dos encontros e desencontros de seu casal de protagonistas, interpretado por Zao Thao e Li Zhubin. Procedimento semelhante ao do francês Leos Carax, que recorre ao seu arquivo particular, de Boy Meets Girl (1984) a Annette (2021), para produzir um filme-ensaio hipnótico, que dialoga com o História (s) do Cinema de Godard. Já o veterano André Téchiné reencontra Isabelle Huppert, com quem fizera As Irmãs Brontë em 1979, para propor uma reflexão sobre a (im)possibilidade de diálogo em um mundo marcado pela polarização, confrontando uma policial viúva e um jovem blackblock investigado por seu envolvimento em atos de vandalismo. Vencedor do prêmio de melhor direção em Cannes, o português Miguel Gomes apresentou o drama de época Grand Tour, sobre um homem em fuga que percorre diversos países orientais, perseguido pela noiva que abandonou. O canadense David Cronenberg, mestre do body horror, compareceu com o sombrio O Senhor dos Mortos (péssima tradução para o original The Shrouds/As Mortalhas). Vincent Cassel interpreta o proprietário de uma empresa de serviço funerário que permite aos familiares acompanhar a decomposição dos corpos de seus entes queridos em tumbas equipadas com câmeras. Apesar da originalidade de sua premissa, o filme não consegue sustentar o interesse do espectador, perdendo-se em uma trama paralela de espionagem bastante confusa. O alemão Dying – A Última Sinfonia, vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Berlim, foi a grande paulada dramática da Mostra. Ao longo de três horas, os conflitos de uma família disfuncional – formada por um pai em estado avançado de demência, uma mãe com câncer terminal, a filha alcoólatra e o irmão, maestro bem sucedido na profissão mas emocionalmente instável – são encenados pelo diretor Matthias Glasner em longas sequencias de alta intensidade emocional. Uma delas em particular, a discussão entre mãe e filho, na qual ambos confessam sua incapacidade de amar um ao outro, é um dos momentos cinematográficos do ano. A boa notícia é que todos esses títulos estão com distribuição assegurada no Brasil, devendo entrar em cartaz nos próximos meses.
Entre as descobertas curiosas da programação está 2073, de Assif Kapadia, ficção científica distópica que combina uma trama ficcional ambientada no ano de 2073, com a humanidade à beira da extinção, a material de arquivo e telejornais da atualidade. O avanço da extrema-direita no mundo, com seus discursos negacionistas e ataque sistemático à democracia, e os eventos climáticos extremos são apontados como responsáveis do apocalipse iminente pelo diretor, que bombardeia o espectador com imagens que mostram até mesmo a enchente que assolou o Rio Grande do Sul em maio (com direito à aparição do cavalo Caramelo equilibrando-se sobre o telhado), o Pantanal em chamas e a destruição da Amazônia.
A representação brasileira
A seleção brasileira veio forte este ano, com a expressiva cifra de 56 títulos. A principal atração foi o novo filme de Walter Salles, Ainda Estou Aqui, que teve três sessões com ingressos disputados a tapa pelo público. Apesar de suas muitas qualidades (a principal delas talvez seja a de ter conseguido exorcizar a Vani de Os Normais do corpo de Fernanda Torres), o filme de Salles causa menos impacto que os explosivos Baby, de Marcelo Caetano, e Malu, de Pedro Freire, com seus protagonistas intensos – o jovem gay abandonado pelos pais que se envolve com um garoto de programa mais velho, no primeiro, e a atriz bipolar do segundo, inspirada na mãe do diretor, em desempenho extraordinário de Yara de Novaes. Ou que o inventivo Mário de Andrade – O Turista Aprendiz, no qual o veterano Murilo Salles recria a viagem do grande escritor modernista pelo norte do Brasil inteiramente em estúdio, compensando as limitações orçamentárias da produção com soluções visuais de enorme criatividade. Entre os documentários, o surpreendente Pele de Vidro, de Denise Zmekhol, ilustra a derrocada da utopia modernista no Brasil ao recuperar a história de um ícone arquitetônico destruído pela combinação de descaso público e desigualdade social tão frequente no Brasil.
Entre os nacionais selecionados para a 48ª Mostra foram apenas três novas produções gaúchas, mas todas fizeram bonito e foram muito bem recebidas. Entre elas, dois títulos inexplicavelmente recusados pelo Festival de Gramado em sua última edição, Continente, de Davi Pretto, e Bicho Monstro, de Germano de Oliveira. O primeiro, reconhecido com o prêmio de melhor direção na seção Novos Rumos do Festival do Rio e selecionado para a mostra competitiva do Festival de Sitges, na Espanha (mais importante festival de cinema fantástico do mundo), apresenta uma trama de horror rural com subtexto sociopolítico, na linha de Bacurau e Propriedade. O segundo, longa de estreia do montador Germano de Oliveira, que ficou entre os 16 favoritos do público, também flerta com o gênero fantástico e tem como protagonista uma menina fascinada com relatos sobre a existência de uma ave monstruosa na região do Vale dos Sinos. Jorge Furtado completou o time com Virginia e Adelaide, codirigido por Yasmin Thayná, que resgata a história da pioneira Virginia Bicudo, mulher negra que foi a primeira psicanalista do Brasil. Além destes, Um é Pouco, Dois é Bom (1970), de Odilon Lopez, primeiro longa restaurado pela Cinemateca Capitólio, integrou a faixa dedicada a obras clássicas, redescobertas e filmes restaurados, ao lado de títulos como Também Somos Irmãos, de José Carlos Burle, Abismu, de Rogério Sganzerla, Brincando nos Campos do Senhor, de Hector Babenco, Paris, Texas, de Wim Wenders, Onda Nova, de Ícaro Martins e José Antônio Garcia, Um Homem em Estado... Interessante, de Jacques Demy, e Olhos Negros, de Nikita Mikhalkov.
Formação de público
Entre as atividades paralelas da 48ª Mostra, o IV Encontro de Ideias Audiovisuais se destacou por oferecer um cardápio atraente de conferências, mesas-redondas, lançamentos de livros e oficinas, atraindo profissionais ligados a diferentes segmentos da cadeia produtiva do audiovisual.
A cereja do bolo foi a conferência de abertura, a cargo de Efe Cakarel, criador e CEO da Mubi, serviço de streaming com foco no cinema autoral. Cinéfilo voraz, depois de se destacar em competições de matemática e se estabelecer no mercado como bem sucedido empresário de TI, Cakarel fundou a Mubi em 2007. Inicialmente chamada The Authors, a empresa começou de forma modesta, mas vem conhecendo ao longo dos últimos anos uma expansão crescente. Sem recorrer a gráficos ou power points, fazendo uso apenas de seu carisma pessoal, bom humor e talento para contar histórias, Cakarel revelou que o Brasil atualmente é o país com o maior número de assinantes da Mubi no mundo, que o êxito internacional representado pela aquisição de Dias Perfeitos (em 2023) e A Substância (em 2024) alçou a empresa a um novo patamar e que o próximo passo será o investimento na produção de conteúdo, complementada pela distribuição em salas e em seguida no streaming. Os novos filmes de Jonathan Glazer, Jim Jarmusch, Kelly Reichardt e Karim Aïnouz serão os primeiros da lista, anunciou Cakarel com entusiasmo.
Ainda na programação paralela, a 48ª Mostra sediou a primeira edição da Mostrinha, voltada à formação de novos públicos, uma das principais preocupações de Renata de Almeida, que também está voltando a investir na distribuição de filmes com o selo Filmes da Mostra. Renata acredita que este desafio precisa ser encarado de frente pelo setor, e também passa pelo diálogo com o streaming, que não deve ser demonizado e pode reaproximar o público do cinema brasileiro. Pelo segundo ano consecutivo, a Mostra concedeu o Prêmio Netflix, que garante a distribuição de um filme brasileiro ainda inédito em 190 países. O escolhido pelo júri foi Serra das Almas, de Lírio Ferreira. O diretor pernambucano, aliás, marcou presença com dois filmes. Além de Serra das Almas, estreou na Mostra o documentário A Última Banda de Rock, sobre a conturbada trajetória da banda gaúcha Cachorro Grande.
(*) Crítico de cinema