Dirigido por um dentista, tem menos de oito minutos e com um suposto vilão usando fita adesiva no rosto para ser mais assustador. Assim é o primeiro filme de terror feito no Rio Grande do Sul. Lançado em 1960, Noite de Terror foi rodado despretensiosamente na zona norte de Porto Alegre, mas se consolidou na história do cinema gaúcho.
Com direção de Bruno Hochheim (1914-1992) e argumento de João Carlos Pacheco, Noite de Terror é um curta-metragem mudo em 16mm. Em algumas projeções, o filme era rodado sincronizado a um disco de vinil com música tétrica.
O curta conta a história de uma mulher casada que é vivida por Tatiana Petrowna. O marido (interpretado pelo próprio Bruno) sai para trabalhar e ela fica sozinha em casa durante a madrugada. Antes de tudo, a primeira cena traz uma participação especial: Roaldo, filho do diretor, faz uma ponta como leiteiro.
Para passar o tempo, a mulher lê uma revista de contos aterrorizantes até adormecer. Só que ela começa a confundir ficção e realidade, associando o açougueiro da família com um monstro que está na capa da publicação. O suposto vilão é interpretado por João Carlos Pacheco, que, além da fita adesiva no rosto, simula estrabismo. A mocinha se vê ameaçada pelo homem, que invade a residência para roubá-la e, quem sabe, matá-la.
Em sua dissertação intitulada "O Cinema Fantástico no Rio Grande do Sul (1960-2020)", apresentada em 2021 no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS, o pesquisador Rodrigo Figueiredo Nunes observa que “um dos grandes momentos do filme se dá no momento em que o vilão está subindo escadas, filmado numa angulação de câmera que lembra as técnicas do expressionismo alemão”.
Mas tudo não passava de um sonho. O marido chega no dia seguinte, ela recebe a carne do açougueiro (havia uma entrega de porta em porta) e, por fim, joga no lixo a revista de terror.
Noite de Terror foi localizado pelo pesquisador Glênio Póvoas, em 2001, enquanto trabalhava em sua tese de doutorado sobre os primeiros 50 anos do cinema gaúcho (1904-1954). Naquela altura, ele pesquisava sobre o Foto Cine Clube Gaúcho — organização fundada em 1951, que, além da fotografia, também promovia experiências com o cinema —, do qual Bruno fazia parte. Glênio decidiu entrar em contato com a família do cineasta para acessar os filmes.
O pesquisador encaminhou o filme localizado para a Cinemateca Brasileira, em São Paulo (SP). A única cópia em 16mm do filme segue com a instituição.
Em nota, a Cinemateca explica que, já em 2002, "a cópia estava em um avançado estágio da síndrome do vinagre, sofrendo desplastificação, perda da rigidez do suporte e um abaulamento pronunciado".
"Não houve uma ação de restauro do filme. Ele foi telecinado em resolução padrão SD, gerando uma fita Betacam SP que se encontra em nossos depósitos de vídeo", acrescenta a Cinemateca. "Não sabemos se o material hoje apresenta condições de duplicação. Para confirmar as condições, é necessária a análise técnica do material, mas tendo em vista que já em 2002 as condições eram muito ruins, provavelmente, o material não estará em condições de processamento", finaliza a nota.
O curta de sete minutos e 30 segundos foi exibido pela primeira vez em 5 de dezembro de 1960 no Concurso Anual de Cinema do Foto Cine Clube Gaúcho. Foi 1º lugar na categoria enredo e 4º na classificação geral. Sua última exibição pública ocorreu em 2019, na Cinemateca Capitólio de Porto Alegre, numa madrugada dedicada a filmes de horror.
Pioneirismo
Em sua dissertação, Rodrigo atesta: “O cinema fantástico produzido no Rio Grande do Sul nasceu através de um filme de terror psicológico”.
— Esse filme se assume como uma história aterrorizante, associando o açougueiro à figura do monstro, que vai invadir a casa e atacar a mulher. Ela fica em uma tensão crescente — destaca o pesquisador. — Classifico como terror psicológico. Aquela coisa que está na cabeça da pessoa, mas não é fato. Só que já é suficiente para criar uma atmosfera de medo.
Glênio explica que, até os anos 1960, o Rio Grande do Sul não tinha uma tradição de filmes de ficção, mesmo em curtas. Ele acrescenta que, até então, a produção é baseada em documentários, filmes curtos ou institucionais, majoritariamente produzidos pela Leopoldis-Som.
— Há grupos amadores que fazem filmes de ficção, mas que são mais comédias ou pequenos dramas, uma produção que fica mais restrita àquele universo, de reuniões e festivais internos — ressalta. — Não havia uma tradição não só de filme de terror, mas da ficção como um todo. A ficção só vai engrenar a partir do super-8, na metade dos anos 1960. Mesmo o terror vai custar um pouco mais de tempo.
O pioneirismo de Noite de Terror é sustentado por outros pesquisadores. Leonardo Bomfim, programador da Cinemateca Capitólio, sublinha:
— O terror é um gênero amplo. Existe toda uma filmografia inacessível de obras desaparecidas. Filmes dos anos 1950 como Vento Norte e Agosto 13 Sexta-feira dialogam com o gênero. Mas Noite de Terror pode ser considerado o primeiro filme (de terror do RS), de fato.
Laura Cánepa, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Paulista (UNIP) e especialista na história do cinema de horror brasileiro, corrobora:
— Se você considerar a autodeclaração como um marco, acho que é esse mesmo. Esta costuma ser a forma mais segura: Noite de Terror se propõe como um filme de terror.
Dentista e cineasta
Bruno Hochheim nasceu em Timbó (SC) e veio ainda jovem para o RS. Ele foi dentista por toda vida, seguindo os passos dos pais, mas tinha o cinema amador como hobby. Estudou audiovisual junto ao Foto Cine Clube Gaúcho, onde também chegou a lecionar, e dirigiu 33 filmes — a maioria curtas de poucos minutos, o que inclui documentários.
Os filmes eram realizados pela Rodelu Produções, que unia os nomes de seus três filhos: Roaldo, Delmar e Lúcia. Ele tinha como parceiro de filmagem João Carlos Pacheco, que foi ator em vários de seus curtas.
O dentista não realizou outro filme fantástico. A filha de Bruno, Lúcia, 71 anos, lembra que o pai produziu dramas, comédias e documentários — há registro sobre acidente de avião em Santo Ângelo, ruas de Porto Alegre, Cataratas do Iguaçu, entre outros temas. Normalmente, as filmagens de ficção ocorriam na casa da família, que era localizada na Rua Zamenhoff, no bairro São João.
— Eram produções feitas em um fim de semana. Participavam os vizinhos, os parentes e amigos — recorda Lúcia.
Sobre Bruno, a filha acrescenta:
— Era muito criativo e comunicativo, especialmente dedicado à profissão de dentista. Eu não tinha noção de todo esse pioneirismo do pai.