No ano em que são celebradas as nove décadas de nascimento de um dos expoentes da cultura gaúcha, Antonio Augusto Fagundes, o inesquecível Nico Fagundes (1934-2015), um pedaço de sua obra requer atenção para não cair no esquecimento. Trata-se de O Grande Rodeio (1975), segundo e último filme dirigido pelo folclorista — o primeiro foi O Negrinho do Pastoreio (1973), protagonizado por Grande Otelo.
Prestes a completar meio século, a produção mais nova — ao contrário do debut de Nico no cinema, que ainda pode ser encontrado em mídia física e em mostras dedicadas a Otelo —, foi se perdendo no tempo. E não é força de expressão. As cópias do título, em película, deterioraram-se com o avançar dos anos e até mesmo uma que estava sob posse do cineasta, conforme sua viúva, Ana Fagundes, simplesmente virou pó, devido à conservação não adequada e ao material extremamente sensível.
Assim, com a impossibilidade de reexibição, as imagens em movimento de O Grande Rodeio acabaram sobrevivendo apenas na memória de quem pôde assistir ao longa-metragem nos cinemas, quase meio século atrás. Um título cinematográfico, basicamente, sobrevivendo na base da oralidade. De acordo com Ana, não ter cópias do filme disponíveis é uma grande lacuna na obra de Nico:
— O Grande Rodeio era um filho muito querido dele. E tinha uma paixão muito grande por escrever, por cinema. O filme tinha essa ideia de defender a tradição e o folclore gaúchos. Mas, infelizmente, pouca gente conhece. O meu sonho é que no ano que vem, com os 50 anos do filme, ele acabe sendo digitalizado e exibido para o público.
O desejo da viúva de Nico, que sequer teve a oportunidade de assistir ao filme, é possível, mas tem um alto custo. Os negativos originais estão conservados na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Por conta disso, seria possível a digitalização. Entretanto, conforme orçamento realizado em 2023, solicitado pelo Portal do Cinema Gaúcho, seria necessário desembolsar nada menos do que R$ 41,7 mil, que é o valor para a conversão dos 103 minutos da película — um trabalho demorado, delicado e caro. Não há, no momento, nenhum projeto nesse sentido.
— A digitalização era um desejo do Nico. Ele começou a ir atrás disso há uns 15 anos, mas em seguida acabou adoecendo, e o processo acabou sendo deixado de lado — aponta Ana.
Mais perto, no Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, que fica no Centro Histórico de Porto Alegre, existe um pedaço dessa história: cerca de 20 minutos do filme, presentes em um rolo com cerca de 550 metros — a obra completa conta com cinco latas. Por lá, é possível, com o auxílio de um dos profissionais da instituição, olhar os frames através de uma lente de aumento e ter uma noção de como é a produção. E fica por aí. Não pode ser exibida devido a sua fragilidade. Segundo o diretor da instituição, Welington da Silva, o material está lentamente se deteriorando, problema que seria acelerado se colocado em um projetor.
— O título está passando por um processo de desplastificação do acetato. Isso faz com que o filme que está dentro da película, protegido pelo plástico, vá se perdendo. Este pedaço de O Grande Rodeio ainda não perdeu informação, mas já tem alguns fungos, que mancham cenas com uma coloração rosada. A película cinematográfica é o material mais complexo que já vi atuando como museólogo — salienta Silva, que comemora a existência do filme completo na Cinemateca Brasileira.
Integração
Com boa parte rodada em São Borja, na Fronteira Oeste, O Grande Rodeio teve, para a época, um grande investimento: 350 mil cruzeiros. Na história, a filha de um rico fazendeiro do Rio Grande do Sul é educada no Rio de Janeiro e, por isso, acaba desprezando os valores que são mais caros a seu pai, muito ligado às tradições gaúchas. A jovem, então, visita a família e encontra o seu progenitor empenhado na realização de um grande rodeio em sua cidade natal.
Ao deparar com a mudança da filha, o pai pede a um estudioso do folclore gaúcho que ensine um pouco da cultura do Estado à sua herdeira. Durante as aulas, acaloradas discussões ocorrem e, ao invés de afastar aluna e professor, aproxima-os "numa ardente paixão", conforme a sinopse. A chegada do noivo carioca, que representa valores considerados "alienígenas", como kung-fu, caratê e discos do Alice Cooper, provoca um duelo entre ele e o novo interesse romântico da moça.
O trio principal do filme é formado pelo próprio Nico Fagundes, dando vida ao professor Antonio; Rejane Schumann, que interpreta Rosinha, a filha do fazendeiro; e Ayrton dos Anjos, o Patineti, falecido em junho, que atuou como o noivo carioca que desafia os costumes gaúchos. O título ainda tem uma série de participações especiais, entre atores e músicos, como Alberto Ruschel, Luiz Menezes, Barbosa Lessa, Leopoldo Rassier, Os Araganos, Os Muuripás, Os Angüeras, Os Serranos e Euclides Fagundes Filho, o Bagre Fagundes.
Com muito bom humor, Bagre recorda as gravações da produção de seu saudoso irmão. Interpretou em O Grande Rodeio um artista popular que, com a sua gaitinha, apresentava a canção Mané Romão no meio da Praça Getúlio Vargas, no Alegrete. O público presente era totalmente formado por moradores da região e, de improviso, a cena deu certo e foi para o filme. Na sequência, o personagem entrava em seu Fusca e partia para São Borja para o tal rodeio que iria ocorrer por lá.
— A câmera me filmava saindo de Alegrete e, depois, chegando em São Borja. Não ganhei nada para fazer a minha participação, o Fusca era meu e ainda tive que pagar a gasolina do meu bolso (risos) — conta Bagre. — Foi uma tentativa do Nico de fazer um filme totalmente rodado no Rio Grande do Sul, e ele fez. Saiu um filme agradável, bem-intencionado.
De acordo com Ernesto Fagundes, sobrinho de Nico e filho de Bagre, a ideia do longa-metragem era levar para as telas de cinema uma representação do histórico programa radiofônico Grande Rodeio Coringa, que era apresentado por seu tio mais velho, Darcy Fagundes — primogênito da família e que está no filme de 1975. Ernesto avalia que o projeto deu certo:
— O tio Nico fez o filme para os artistas, bem no estilo do Galpão Crioulo, hoje. O Grande Rodeio era a marca de um espaço de cultura de vários artistas. Então, teve a marca do tio Darcy no rádio e a do tio Nico no cinema. Era para juntar a gauchada, como uma caravana de integração. Nunca foi para algo exclusivo. Aonde chega isso? Ao Canto Alegrense: "Ouve o canto gauchesco e brasileiro / Desta terra que eu amei desde guri". Sempre foi pela integração.