Trinta e cinco anos depois, a Ilha das Flores não é mais como aquela que é mostrada no filme homônimo de Jorge Furtado. Na verdade, ela nunca foi daquele jeito. Vencedor do Urso de Prata do Festival de Berlim, o multipremiado curta-metragem, conforme o próprio descreve em seus créditos finais, foi gravado em outro lugar: a Ilha Grande dos Marinheiros. Ambas as ilhas fazem parte do bairro Arquipélago, em Porto Alegre, mas são separadas por dois quilômetros.
Mesmo que a distância não seja tanta e o título da obra diga outra coisa, a história dos moradores da Ilha das Flores não foi representada no filme, escolhido pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) como o melhor curta-metragem nacional de todos os tempos. Por isso, os ilhéus lamentam que, três décadas e meia depois, o estigma de "comedores do lixo que sequer serve para os porcos" ainda paire pela localidade, tracionado pelos sucesso e qualidade atemporais da produção.
Moradora desde que nasceu da Ilha das Flores, Cristina Rodrigues Duarte, 44 anos, no dia da visita da reportagem, estava pegando doações, em uma tenda solidária armada na Rua do Pescador, para levar para o que sobrou de sua casa após a enchente. Esquecendo o drama recente, ela relembra que, na época do lançamento do curta-metragem, ainda era uma criança, e toda a repercussão ainda está viva em sua memória. De acordo com ela, todos os seus vizinhos ficaram tristes ao assistir ao filme — afinal, não se enxergavam nele.
— A gente realmente recebia doações de alimentos que já não podiam ser vendidos. Os mercados traziam de caminhão e distribuíam para os moradores. Mas a história dos porcos nunca aconteceu. Minha mãe sempre me contava. E, por isso, foi vergonhoso para todos nós. A Ilha nunca é vista e, quando consegue, é daquele jeito, mais prejudicando do que ajudando — lamenta Cristina.
De acordo com ela, enquanto a Ilha das Flores ficou com a marca do lixo, do porco, a Ilha Grande dos Marinheiros conseguiu ter uma certa prosperidade, recebendo um galpão de reciclagem e uma quadra de esportes depois do filme. Mãe de Taine, 12 anos, e Felipe Júnior, de 18, Cristina atualmente está desempregada. Ela ainda espera que alguém, de fato, olhe para o local onde ela mora, buscando ajudar a melhorar a qualidade de vida dos moradores.
Enquanto esse salvador não aparece, heróis mais modestos seguem na trincheira. É o caso de Juramar Vargas, 63, uma liderança comunitária na Ilha das Flores, mas que foi retribuído pelo destino ao ter a sua casa praticamente destruída pela enchente. Por ali, o implacável lutador vive com o irmão João Carlos, 69, que precisa de atenção especial. Sua vida se resume, assim, aos outros. Em pensar em soluções para os seus semelhantes. E usa a sua cabeça como arma: sabe as datas precisas de cada decisão dos governantes, sejam elas em prol ou prejudiciais aos moradores dali. Ninguém o passa para trás.
Para seu Juramar, a Ilha das Flores sempre foi um pulmão para Porto Alegre, por segurar as águas e conseguir proteger a cidade. Hoje, acredita que já não é mais assim, pelas mudanças feitas pelo homem, como o cimento das grandes construções substituindo a terra, que absorvia as enchentes. E esse é um dos pontos dos quais ele mais notou diferença desde o lançamento do filme, lá em 1989, para agora. Em sua visão, o curta, sim, gerou aversão em alguns moradores da região, mas se conectava com pontos dos quais se recorda — e eles convergem com essa mudança que viu ao redor de onde vive.
— Atrás da minha casa, por exemplo, antes de existir esta marina, tinha um chiqueirão de porcos. O seu Luís, criador, trazia comida dos restaurantes para os bichos. E eles acabavam separando a comida. O que dava para ele e a família, eles comiam, mas a comida era para os porcos. Na Ilha Grande dos Marinheiros, não era diferente. Os restaurantes traziam as comidas e o povo, extremamente pobre, aguardava para separar. A disputa com os porcos foi um incremento para o filme, mas, sim, a comida era trazida para os porcos — afirma.
Na Ilha Grande dos Marinheiros
Entre as pessoas que esperam na fila para poder catar os restos de alimentos, já na reta final de Ilha das Flores, o filme, uma menina vestindo blusa roxa, bem maior que o seu tamanho, entra no recinto cercado em que esperam os restos de comida desprezados. Ela e a família reviram o refugo atrás de algo que ainda sirva para comer. Seu rosto quase não fica em quadro, mas as cenas que protagoniza são um soco no estômago. Nenhum ser humano deveria viver daquele jeito.
A guria se chama Janaína Gonçalves da Silveira e, hoje, tem 45 anos. Ela não mora mais na Ilha Grande dos Marinheiros, onde o filme foi rodado. Atualmente, preside a Associação Socioambiental das Evinhas, que dá trabalho para 12 pessoas. Todas vivendo de reciclagem, habilidade esta que considera uma herança de família. Atualmente, porém, ela se vê em uma sinuca de bico, porque o galpão que aluga para fazer a separação dos materiais ficou de baixo d'água, no bairro Humaitá e, sem conseguir pagar as mensalidades, teme perder o espaço — que já não era adequado para o trabalho antes da enchente.
O galpão fica na Avenida Voluntários da Pátria, e ela espera, em breve, conseguir outro local para poder trabalhar e, assim, continuar atuando com a reciclagem, trabalho que faz desde os nove anos. Esse drama remete ao vivido por ela na Ilha Grande dos Marinheiros, na qual ela e sua família fizeram parte do primeiro grupo organizado de catadores de recicláveis de Porto Alegre, em um movimento que teve apoio do marista Irmão Antônio Cecchin, ainda em 1989, com a criação de um galpão, na esteira da repercussão que Ilha das Flores teve.
Ainda assim, mesmo que a produção tenha colocado um holofote nos ilhéus e incentivado esta organização no local, de acordo com Janaína, que foi um dos rostos que ajudaram a contar esta história, a visão passada no filme não é correta:
— Já começa com o nome errado da ilha e, depois, diz que a gente brigava com os porcos, mas não era assim. Vinha um caminhão do supermercado e tinha um lugar ali para nós. Vinha tudo sujo, mas era maçã com maçã, cebola com cebola. E, no dia da filmagem, a produção colocou tudo junto, com porco, cavalo. E dizia que a gente brigava com os porcos, o que foi uma vergonha para nós. O caminhão realmente vinha, a gente entrava no cercadinho, de cinco em cinco, pegava e saía. Mas não tinha porco nem nada.
Aos 64 anos, Eliana Silva da Silva morava na Ilha Grande dos Marinheiros na época em que o curta-metragem foi rodado por lá — hoje, ela trocou de ilha e vive na das Flores com o filho, Matheus, 14 anos, e o irmão Cláudio, 50. Ela conhecia a fama da produção, mas nunca tinha tido o impacto do contraste com a realidade local até recentemente, quando o filme começou circular pelas redes sociais. Ela, então, parou para assistir pela primeira vez na última semana. E se decepcionou.
— Eles distorceram muito. Eu nasci e me criei lá, mas nunca passei aquela dificuldade. Tinha criação de porco, até mesmo o meu pai criava porcos. A gente sobrevivia disso também, mas fome a gente não passou — conta Eliana, relembrando que, depois do filme, a criação de suínos no local foi proibida. — Meu pai já trabalhava de carroça, mas, depois da proibição, teve que começar a fazer fretes para sobreviver. Ainda teve isso.
"Não é um documentário", diz Furtado
— Evidentemente, não é um documentário. O filme tem atores e abre dizendo que Deus não existe, que é uma afirmação totalmente inverificável para um documentário — explica Jorge Furtado, argumentista, roteirista e diretor de Ilha das Flores. — É, na verdade, um filme de gênero misto. É um ensaio cinematográfico. Um texto com imagens. Mas as pessoas chamam qualquer curta-metragem de documentário e, também, não leem os créditos, onde isso fica explícito.
O mote da produção, segundo Furtado, surgiu de um vídeo de estudantes da PUCRS, que registraram a situação da disputa de alimentos entre humanos e porcos na Ilha Grande dos Marinheiros. Ele, bem como seus companheiros da ainda muito jovem Casa de Cinema de Porto Alegre, apostou todas as fichas em Ilha das Flores — que recebeu este nome justamente para não estigmatizar os moradores da ilha vizinha. Cidadãos do local, dos Marinheiros, então, foram convidados a participar da produção e alguns compareceram no dia das gravações, mas sem receber cachê.
— Eu sabia que, por lá, na Ilha das Flores, tinha um pessoal com marinas, lanchas. Casas de jogadores de futebol. Então, utilizei o nome para não estigmatizar os moradores da Ilha dos Marinheiros. Mas foi uma reencenação de uma coisa que acontecia. O filme, na verdade, é sobre um sistema injusto e capitalista — salienta o diretor. — E as cenas finais, inclusive, nem foram gravadas na Ilha dos Marinheiros, mas, sim, em um lixão na Sertório, que nem existe mais.
O cineasta, em 2004, uma década e meia depois do lançamento da produção, foi contratado pelo Banco do Brasil para fazer um filme de três minutos com o tema fraternidade — que, inclusive, dá nome ao projeto. Com um orçamento de R$ 700 mil, Furtado teve a ideia de revisitar o título de clássico e usar boa parte desta quantia recebida para melhorar a vida dos habitantes da Ilha Grande dos Marinheiros. Por lá, então, foi construída uma quadra esportiva coberta, ao lado do pioneiro galpão de reciclagem — aquele mesmo capitaneado pelo Irmão Cecchin.
De acordo com o diretor, a decisão da construção se deu após uma reunião com os locais, que pediram pelo projeto para que seus filhos se ocupassem com atividades recreativas enquanto os pais — as mães, principalmente — atuavam na reciclagem. Segundo Furtado, funcionou. Pelo menos, por um tempo. Ambas as construções, tanto o galpão quanto a quadra, foram derrubadas para dar espaço para a nova ponte do Guaíba no final da última década.
— Infelizmente, o filme continua sendo muito atual. Agora, com a situação da enchente, ficou terrível. Na verdade, até piorou, porque, pelas fotos que eu vi, destruiu tudo. E eu continuo esperando que o Ilha das Flores seja utilizado para a gente pensar sobre a desigualdade, porque o filme é sobre isso: um sistema econômico em que pessoas vivem à margem, com muito pouco, com as sobras do que os outros produzem. Então, estes 35 foram de involução, com a desigualdade cada vez maior — ressalta Furtado.
E, ao recordar da produção, o cineasta conta que jamais esqueceu de um determinado momento, em que uma menina, ao ser questionada sobre o que achava daquela situação em que se encontrava, com cinco minutos para catar os restos de comida, respondeu de pronto, sem vislumbrar nada melhor para o futuro: "Eu só queria mais tempo".
Ilha das Flores pode ser assistido no Vimeo da Casa de Cinema de Porto Alegre neste link.