Por Ana Lúcia Nejar Viana
Jornalista
Havia um trocadilho que costumávamos fazer na faculdade de Comunicação: “wimwenders e aprendenders”. Eram os anos 1980. Jovens da Região Metropolitana sentiam-se privilegiados com o acesso a grandes obras do cinema por meio de fitas VHS ou em sessões especiais na Capital.
Wim Wenders era um dos cineastas mais incensados entre os universitários. Era comum a troca de impressões sobre fotografia, trilha sonora, o ranking dos melhores diretores e um olhar blasé para as produções e premiações norte-americanas. Oscar? Passávamos longe.
Desafiar e desfiar os roteiros e rir das “viajadas” que volta e meia apareciam no bate-papo no centro acadêmico sobre determinado lançamento. O martelar das máquinas de escrever silenciava-se nas salas de aula quando o volume de conversa subia no bar do DCE.
O Muro de Berlim ainda não havia caído. Estávamos entre uma inflação desmedida e o confisco das poupanças no Brasil. A preocupação com a aids e o Gre-Nal do século dividiam a atenção com Paris, Texas (1984) e Asas do Desejo (1987).
Narrar a vida, apresentar ideias, criticar escolhas, dividir angústias, amparar o outro. Olhando pelo retrovisor, parece tudo tão bonito, tão lento, quase estático. O mundo analógico. O mundo que não existe mais.
Wim Wenders recentemente cutucou esse sentimento nostálgico em seu lindíssimo Dias Perfeitos (Perfect Days, 2023, disponível nas plataformas Mubi e Amazon Prime Video). E, também em 2023, o filósofo Byung-Chul Han publicou A Crise da Narração (Editora Vozes). Ambos dialogam em suas obras sobre o impacto da tecnologia nas relações pessoais.
E aqui nos deixamos guiar pela visão de cada artista. Imagem, palavra. Música e silêncio. Com direito a algum spoiler também.
Enquanto Wenders faz poesia desvelando a rotina de trabalhador invisível, Han aponta a dificuldade da escuta pelo excesso de estímulos. A crise da narração lança luz à vida pautada por compromissos infinitos. Lastima o tsunami de informações. Apela para o retorno à contemplação. “A vida que se desloca de um presente para o outro, de uma crise para a outra, de um problema para o outro, reduz-se a uma sobrevivência. A vida é mais do que solução de problemas. Aqueles que só solucionam problemas já não possuem futuro. Somente a narração desvela o futuro, somente ela nos dá esperança”, escreve Han.
E de que esperança o personagem de Wenders se nutre? Do amanhecer ao som da vassoura? Do ritual de dobrar a cama, fazer a barba, pegar o café na máquina? Do trajeto ao som de músicas antigas no toca-fitas? Do trabalho esmerado em cada privada, com direito a espelhinho para evitar qualquer acúmulo de sujeira? Do almoço diante de árvores, onde capta a luz investida de sol entre as folhas altas com sua máquina fotográfica Olympus e revela o rolo do filme sistematicamente a cada folga? Da ida ao bar para beber e ser recepcionado com amorosidade pelo tanto de mistério que traz consigo?
Não. O dia ritualístico não passa de neurose. Onde tudo é controlado, tudo é milimetricamente feito dentro de um esquema. Não pode sobrar tempo. Não pode faltar tempo. Em mais de duas horas de filme, pouco se ouve a voz do personagem. Seu olhar traduz alegria, tristeza e arrebatamento.
É na mudança da rotina, na alteração de sua agenda e desmantelamento do seu controle que vemos o personagem em sua forma crua. O neurótico não suporta. Explode ao ver o esforço se diluir. Irritadiço. Alterado. Humano.
Talvez seja essa a grande sacada de Wenders.
É impossível não se emocionar com as canções que amenizam a brutalidade do trânsito. É fácil se enredar na singeleza dos gestos e cordialidade dos comerciantes.
Difícil não se indignar na cena iniciada com o acolhimento a uma criança perdida seguida de preconceito da mãe alterada. Natural é se permitir sorrir entre os diálogos permeados de empatia e esmorecer diante das sombras que a finitude da vida suscita.
Tudo é comum a qualquer geração, inclusive nossa dificuldade em manter vínculos fortes hoje em dia.
Wenders consegue identificar a beleza pueril e compartilhá-la. Seja mostrando os banheiros públicos de Tóquio (lindíssimos e tecnológicos, aliás), ou tocando Lou Reed numa fita-cassete em um dia ensolarado. O singelo é grandioso.
O aceno introvertido entre dois desconhecidos num parque é quase obsceno, perdendo apenas para um beijo no rosto como agradecimento. A neurose, filha da solidão, da dor e do trauma, aqui é sublimada. E a narrativa venceu, para a alegria de Han.