Por Conrado de Oliveira
Crítico e pesquisador de cinema, criador do @sobrecine e do podcast Rebobine o VHS
Uma colmeia, por definição, designa a construção habitada por abelhas e também seu coletivo, geralmente trabalhador, subordinado a uma rainha e unido por um objetivo em comum: a sobrevivência. No filme de Gilson Vargas que está em cartaz nos cinemas, todas essas definições parecem se encaixar na trama em que um grupo de imigrantes alemães tenta atravessar um período terrível da história enquanto luta por sua subsistência no interior do sul do Brasil – mas sem a união, tudo logo cai por terra.
A Colmeia é o segundo longa-metragem dirigido por Vargas, que antes tem no currículo o emocional e introspectivo road movie Dromedário no Asfalto (2014). Os dois filmes possuem uma distância abismal entre si, com exceção do tema das famílias despedaçadas e a busca por um sentido próprio na ausência dessas. Seu mais novo trabalho, no entanto, mergulha no suspense com uma atmosfera próxima à dos horrores folclóricos – gênero dissecado no ótimo documentário Woodlands Dark and Days Bewitched (2021), de Kier la Janisse. Ainda assim, apesar da atmosfera onírica e quase sobrenatural, a trama é, em essência, extremamente realista.
Como apresenta em seus primeiros segundos, A Colmeia se ambienta em uma época na qual, após imigrantes europeus se instalarem no Sul pela promessa de subsídios e boas terras para o trabalho rural, eles logo se tornam perseguidos como inimigos durante a Segunda Guerra Mundial. No filme, a colmeia figurativa é uma casa em estilo enxaimel, na qual os jovens gêmeos Christoffer e Mayla (João Pedro Prates e Andressa Matos) desafiam os limites impostos pelas regras rígidas de Werner (Rafael Franskowiak), espécie de patriarca do grupo. Com eles vivem Bertha (Janaina Pelizzon), esposa de Werner, que espera de uma providência divina a solução para a situação em que vivem; o operário fiel Kasper (Samuel Reginatto), que sofre com a proibição de falar seu próprio idioma; Uli (Martina Frölich), que parece integralmente dedicada ao trabalho e imersa em seus próprios demônios; Erika (Thais Petzhold), figura enigmática que serve como empregada da casa; e Lila (Renata de Lélis), que, além do trabalho, se permite alguns “pecados”, como a vaidade e a luxúria.
Baseado no desenvolvimento de personagens tão complexos que não exploram suas histórias pessoais e personalidades a partir de muitos diálogos, mas de ações, a produção confia aos seus atores responsabilidades grandes – que eles resolvem de maneira singular. Quando os gêmeos descobrem suas particularidades – Christoffer quer ajudar os indígenas que vivem ainda mais às margens da sociedade e Mayla desafia as regras da casa para burlar a fome –, eles se distanciam e o fiapo que une o grupo é rompido, fazendo com que as ameaças antes apenas externas se tornem também iminentes dentro da própria colmeia.
Em seu desenvolvimento, conflitos e tragédias vão transcorrendo e colocando a família em uma relação cada vez mais insustentável – e algumas alegorias demonstram isso em sequências do filme. Se de início temos Erika percorrendo os cômodos da casa com uma fumaça para manter invasores fora da casa – insetos ou outros inimigos? – também vemos Bertha reconstruindo o antigo relógio da família, como se tentasse ajustar o tempo para encontrar dias melhores. Os gêmeos boiando em um gigante lago que logo se torna vermelho também premoniza a morte que parece estar sempre em volta, assim como o sacrifício de um pequeno bezerro – que serve de alimento durante a última e jamais terminada ceia do grupo.
Vencedor de cinco prêmios na mostra gaúcha do Festival de Gramado (nas categorias de direção, ator para João Pedro Prates, fotografia, desenho de som e direção de arte), A Colmeia tem um grande trunfo em seus aspectos técnicos. A direção segura de Vargas, a fotografia atmosférica e naturalista de Bruno Polidoro e o desenho de cena de Gilka Vargas e Iara Noemi transportam o espectador para a opressiva narrativa, colocando-o como persona passiva em meio à tensão crescente da narrativa. Essa também é elevada pelo desenho de som e a montagem de Gabriela Bervian, que respeitam o tempo dos atores e confiam ao dinamismo da trama o tempo e ritmo essenciais para a composição de um clima hipnotizante.
A Colmeia, por fim, é um dos mais novos exemplos da potência do cinema gaúcho. Com narrativa universal a partir de uma história essencialmente local, a obra refuta chavões de que o cinema brasileiro contemporâneo é fraco e o gênero terror é raso. E o faz com excepcional maestria.