Na abertura de Spencer, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (27), surge uma frase sob a tela preta que anuncia: “Uma fábula de uma tragédia real”. Apesar de desnecessariamente didático, o enunciado antecipa o que vem pela frente: o espectador não verá uma cinebiografia burocrática e convencional da vida da princesa Diana. Não há preocupação em reconstituir precisamente os fatos — apenas interpretar e reinventar uma experiência de Lady Di. É uma história de princesa, de fato, mas também de fantasmas.
Spencer é a segunda cinebiografia do cineasta chileno Pablo Larraín (de No e O Clube) que aborda a reconstrução de uma mulher — antes, ele dirigiu Jackie (2016) focando em Jacqueline Kennedy. O cineasta ainda planeja fechar uma trilogia seguindo a premissa, mas ainda não se sabe que personagem protagonizará o terceiro filme.
Em Spencer, a narrativa imagina poeticamente como teria sido o último Natal que Diana (Kristen Stewart) passou com o príncipe Charles (Jack Farthing) e a Família Real em 1991. No ano seguinte, ela e seu então marido iniciaram o processo de separação.
Sem nenhuma escolta e após perder-se pelo caminho, Diana chega sozinha a Sandringham House, casa de campo da realeza britânica localizada no condado de Norfolk. É ali que a família tradicionalmente celebra o Natal, com pompas e ritos. Perdida e exausta, a princesa se sente insatisfeita com seu casamento, em que sofre com a infidelidade e a aspereza de seu marido. Sua vida consiste em manter as aparências para não entrar em conflito com a realeza, além de lidar com o constante assédio da imprensa.
O que a deixa mais confortável é o contato com os filhos, William (Jack Nielen) e Harry (Freddie Spry), e a amizade com a camareira e confidente Maggie (Sally Hawkins, de A Forma da Água). Fora isso, a princesa transborda inquietação e angústia. Sofre com bulimia e, eventualmente, corta a si mesma. Ela se sente sufocada pelas suas obrigações com a Família Real, que a trata com desprezo e a repreende a todo momento. É uma presença estranha e deslocada nos banquetes. Oprimida e pressionada, Diana é uma mulher se deteriorando, que mistura a realidade com devaneios fantasmagóricos.
Todas essas camadas da protagonista se dão por um dos maiores trunfos de Spencer: a interpretação de Kristen Stewart, que transmite a magnitude e a fragilidade necessárias à personagem. Há quem possa ter estranhado a escalação da atriz para viver a “princesa do povo”, mas foi um encaixe empático: no auge da fama com a franquia Crepúsculo, Kristen nunca esteve confortável diante dos holofotes e dos paparazzi que a perseguiam — assim como Lady Di. Com uma atuação completamente conectada ao espírito do papel, ela tem aparecido nas listas de possíveis indicadas ao Oscar de melhor atriz.
Entre os outros trunfos de Spencer que valem ser destacados está a trilha de Jonny Greenwood (guitarrista do Radiohead), que dá o tom tenso e asfixiante para o momento que a princesa atravessava. Outro luxo do filme são os figurinos elaborados por Jacqueline Durran (já ganhou o Oscar por Anna Karenina e Adoráveis Mulheres), que recria modelos icônicos que Diana vestiu ao longo da vida — do vestido de casamento ao sobretudo vermelho que ela vestiu no Natal em 1993.
A partir do roteiro de Steven Knight (Peaky Blinders), Larraín costura uma representação abstrata de Diana em um filme que se desdobra em uma mistura de gêneros, entre o drama e o terror psicológico. O diretor evita uma cinebiografia didática, como se seguisse um verbete da Wikipédia, e trabalha apenas com um possível ponto de virada na vida da princesa — uma antibiografia, como fez em Neruda (2016). Ao mesmo tempo, apresenta uma atmosfera nebulosa: extrai antagonismo da tradição rígida que a princesa deve seguir. O que seria uma "fábula de uma tragédia real”, qualifica-se também como um conto de horror.