Como conseguir criar algo que faça jus a uma obra-prima? Esse foi o grande infortúnio das continuações da franquia Matrix. Por mais que os filmes fossem bons, ao serem comparados com o longa original, tornaram-se experiências frustrantes para o grande público, que criou uma expectativa que não foi alcançada na época. E, provavelmente, não será novamente. Mas isso não é o fim do mundo — seja o real ou o virtual.
Lançado em 1999, Matrix, dirigido pelas irmãs Wachowski, revolucionou a indústria do entretenimento. Foi ali, por exemplo, que o efeito bullet time (na cena em que Neo desvia das balas) atingiu o ápice e virou tendência, assim como o visual arrojado (é cringe falar isso?) e a mistura de cenas de ação espetaculares com filosofia. Foi o melhor de dois mundos, agradando aos jovens que buscavam lutas incríveis e ao público mais cult, que queria refletir sobre a própria existência.
Mas, como dito acima, as sequências, Reloaded e Revolutions não obtiveram o resultado esperado junto ao público, deixando um gosto agridoce no final da saga de Neo (Keanu Reeves). Porém, como a Oráculo profetizou no final do terceiro capítulo, o Escolhido retornou. Desta vez, comandado por apenas uma das irmãs Wachowski, Lana (Lilly não quis retornar), Matrix Resurrections, que chega nesta quarta-feira (22) aos cinemas, busca ser disruptivo como o longa que deu o pontapé inicial nesta saga. E, para isso, mergulha nela própria.
Aqui entre nós
Escorando-se na popularidade da franquia para contar esta nova história, Lana, ao lado dos roteiristas David Mitchell e Aleksandar Hemon, colaboradores das irmãs Wachowski na série Sense8, procuraram levar o público em uma viagem por dentro da trilogia, abusando da metalinguagem ao falar — e debochar — da própria indústria do entretenimento atual, que trabalha, cada vez mais, em cima de marcas consolidadas e se arriscando cada vez menos. É um mundo de continuações, reboots, remakes e adaptações. Em looping.
E isso que é o genial de Matrix Resurrections: a autoconsciência de estar dentro deste processo, mas, mesmo assim, conseguir criticá-lo. Na trama, Thomas Anderson (Reeves) não se recorda de sua saga como o Escolhido, uma vez que vive novamente na realidade virtual, tornando-se criador de games revolucionários sobre, é claro, a Matrix. E, em uma reunião, ele escuta de seu sócio, que quer revisitar a franquia de sucesso, que a "empresa-mãe, a Warner Bros., vai fazer uma continuação, com ou sem a gente". Mais metalinguístico do que isso é impossível.
E este é apenas um dos diversos momentos em que os personagens entregam para os espectadores falas ásperas sobre a falta de criatividade ou a exploração de uma ideia original até que ela se esvazie — a participação de Lambert Wilson como Merovíngio é um deleite neste sentido.
Nesta batida, o primeiro ato de Resurrections é brilhante, surpreendente e ousado. E Matrix é isso: provocação, tirar da zona de conforto — essência que as duas sequências anteriores haviam perdido. Porém, para conseguir aproveitar todos as referências e mergulhar na experiência do filme, é necessário tomar a pílula vermelha — brincadeira, apenas assistir aos longas anteriores já basta.
O novo e o antigo
O quarto filme da saga, felizmente, resgata Reeves e Carrie-Anne (em ótima sintonia, mais uma vez), entregando uma história que, mesmo com ficção-científica e um certo cinismo, traz também outra importante assinatura das Wachowski: o amor que conecta. E, por isso, a saga de Neo e Trinity para se reencontrarem torna esta viagem ainda mais interessante, pois o propósito dela é o mais nobre possível, conseguindo usar bem os clichês.
Porém, a urgência acaba se perdendo neste processo. Nenhuma ameaça é realmente convincente e, para disfarçar isso, o longa insere ótimos momentos de ação — apesar de serem poucos —, com lutas elaboradas e bem coreografadas, uma horda de zumbis (sim, é bem por aí), sequências com efeitos especiais ambiciosos e a exploração do bullet time — querendo, com autoconsciência, tirar algo novo de uma inovação de décadas atrás. E funciona, apesar de ocasionar em um segundo ato fraco.
Também ajudam a dar liga nesta empreitada os novos integrantes: Jonathan Groff, como Smith, e Neil Patrick Harris, como Analista, colaboram para o entendimento da história, ao mesmo tempo em que entregam excelentes desempenhos. Yahya Abdul-Mateen II convence como Morpheus e consegue trazer uma personalidade interessante para o já veterano personagem — e a substituição do ator também é satisfatoriamente explicável. Mas é Jessica Henwick como Bugs quem rouba a cena — ela é ótima e merece mais espaço no futuro da franquia.
Sem medo de entregar algo brilhantemente provocativo, mas menos filosófico, Matrix Resurrections é um papo reto com os fãs da saga, mas não deve ser unanimidade. E nem pretende. Ao apresentar esta história, Lana Wachowski mostra, mais uma vez, que a mente criativa dela, tal qual a de Neo, precisa ser livre para chacoalhar a realidade. O problema é conseguir superar a expectativa: talvez, o Escolhido tenha dificuldades para voar novamente, mas não quer dizer que ele não possa salvar a humanidade. Basta acreditar.