Sentado na ponta de uma das incontáveis e pesadas mesas do Palácio Piratini, em Porto Alegre, mais precisamente na Sala do Governador, entre um "corta" e um "ação", Werner Schünemann, sem se importar com a equipe de filmagem que o cerca, começa a cantar a clássica Como Nossos Pais, escrita por Belchior e eternizada na voz de Elis Regina. Ele é seguido por seus colegas de elenco que, entusiasmados, interpretam a canção a plenos pulmões e batucam no móvel histórico. O momento termina e arranca aplausos dos envolvidos na gravação de Anita - A Guerreira de Dois Mundos, filme que está sendo rodado e que estreia em 2022.
A cena em questão não vai para o longa-metragem, claro — apesar deste ser um épico musical —, mas é interessante traçar um paralelo entre um trecho da canção entoada, que diz "Ainda somos os mesmos / E vivemos / Como os nossos pais", com a carreira de Schünemann, que, depois de quase 20 anos, nos quais acumulou diversos e importantes papéis na televisão e no cinema, volta a ser um dos personagens mais marcantes de sua trajetória como ator, o líder farrapo Bento Gonçalves, destaque da série A Casa das Sete Mulheres (2003).
De acordo com Schünemann, que não vai cantar em frente às câmeras, ele buscou trazer para este novo projeto a mesma energia que depositou no seriado da TV Globo, além da "postura de ética" que o personagem tinha e, por isso mesmo, resgatou a música que ele cantarolava nos bastidores do programa de 2003 e a levou para o set de Anita.
— O Bento foi um personagem muito importante na minha vida pessoal e na minha carreira, no meu aprendizado como ator. Eu acabei desenvolvendo certas coisas a partir de enigmas e desafios que o Bento Gonçalves de A Casa das Sete Mulheres me ofereceu. E, agora, é um retorno a isso, um retorno à casa, um retorno ao Bento, e me deu uma grande vontade de dar um abraço nele. Eu me sinto um privilegiado, porque não são muitos atores que voltam a um mesmo personagem — conta.
Duas versões
Mesmo com o interessante regresso de Schünemann ao papel de Bento Gonçalves, o personagem é apenas um coadjuvante no filme sobre Anita Garibaldi — que, por sinal, em A Guerreira de Dois Mundos, aparecerá em dose dupla: uma versão mais jovem, vivida por Luiza Barbosa, e na fase adulta na pele de Flávia Massena, reconstituindo o final da breve vida da protagonista. E, assim, será feita uma imersão na personagem, com as duas linhas temporais se cruzando em uma jornada de redescoberta e de exaltação ao espírito livre e aguerrido desta mulher que faz parte da história do Rio Grande do Sul.
Nesta empreitada, a cantora Luiza Barbosa, conhecida por sua participação no The Voice Kids de 2019, vive a experiência inédita de atriz e, além disso, o desafio de ser o fio condutor da trama, intercalando interpretação com cantoria. E ela não esconde a animação de estar tendo a oportunidade de mostrar os seus talentos também no cinema, mas sabe da responsabilidade que é dar vida a uma personagem histórica como Anita Garibaldi, que teve o seu bicentenário completado neste ano.
— Este filme é importante para trazer este pertencimento a todas as mulheres, para a gente ter uma heroína aqui no nosso Estado em quem possamos nos espelhar. E poder representar a Anita jovem, como ela começou desde muito cedo a ter que enfrentar essas batalhas na vida de uma forma muito majestosa, sendo uma heroína, está sendo uma grande honra — enfatiza Luiza.
Segundo ela, a experiência em um set de filmagem é muito diferente dos palcos, mas pontua que o diretor e roteirista Guilherme Suman está guiando-a por dentro da sétima arte. Com as canções criadas pelo produtor musical do filme, Duca Duarte, ela acredita que está pronta para fazer com que os espectadores se emocionem nas salas de cinema no ano que vem.
Para Flávia Massena, Anita – A Guerreira de Dois Mundos será a oportunidade de apresentar às pessoas uma nova leitura da história do Rio Grande do Sul, acrescentando os questionamentos possibilitados pela arte nesta nova roupagem. Inclusive, ela reforça a importância de ser uma mulher negra interpretando Anita, que já foi retratada em outros momentos como sendo branca, e é esta figura que ficou perpetuada no imaginário popular.
— O que eu quero construir com essa personagem vai além desse lugar. É uma honra viver essa mulher que é tão importante e tão relevante para a história, que foi forte e determinada, que não aceitava as condições e o que era dito para ela e que foi viver os seus ideais, envolvendo-se nessa aventura — relata.
Cinema com digital
Guilherme Suman comandou os curtas-metragens Bochincho – O Filme e Florêncio Guerra e seu Cavalo, que constituem o chamado Bombachaverso, que busca justamente levar para o cinema as histórias do nativismo, aproximando a nova geração da cultura do Rio Grande do Sul, mas sem usar os estereótipos vistos no passado. E, por isso mesmo, para reviver a história de Anita Garibaldi, o cineasta, que faz a sua estreia em longas, buscou referências no cinema de Tabajara Ruas e em grandes obras mundiais, como Os Miseráveis e, principalmente, Hamilton, musical que insere o pop na história dos pais fundadores dos Estados Unidos, além de reposicionar questões étnicas na narrativa.
Assim, o diretor — que também é um dos atores do filme, dando vida a Joaquim "Gavião" Teixeira Nunes — busca humanizar aqueles personagens históricos, deixando-os "menos mitos e mais pessoas reais", explorando os seus defeitos e as suas inseguranças. Seguindo nesta linha, ele pretende "completar" o Bento Gonçalves visto em A Casa das Sete Mulheres em seu longa, explorando também as fraquezas e o cansaço da figura histórica.
— A narrativa não é necessariamente uma cinebiografia. Vamos nos inspirar na história de Anita, trazendo um tom mais onírico para a obra, brincando com conceitos. Pegar este tema não é uma novidade, mas o moldamos para deixar com a nossa identidade, a nossa digital — explica.
De acordo com Suman, que escreveu o roteiro ao lado do irmão Thiago, o projeto foi oferecido a ele no primeiro semestre deste ano pela família de Luiza Barbosa, que está responsável pela produção do projeto. E, a partir disso, a dupla começou a desenvolver a história. A versão mais recente do script ficou pronta poucas semanas antes do início das gravações e, com o ritmo de produção intenso, ele ainda classifica o filme como um "projeto vivo", que segue se moldando e crescendo conforme as filmagens ocorrem.
Carne e osso
Um dos personagens desta história se chama Cabo Cuanza, interpretado por Sirmar Antunes. Trazido de Angola, o homem escravizado acaba por ser alforriado e, então, decide se juntar aos Lanceiros Negros. Mesmo com uma "participação singela" no filme, o ator, um dos mais prestigiados do Estado, se diz feliz pela oportunidade de estar em uma produção sobre Anita Garibaldi realizada em terras gaúchas, uma vez que ele a considera "um dos grandes personagens mundiais".
— Me sinto honrado em ser convidado para participar deste projeto e de interpretar este personagem. Sejamos eu e os meus colegas negros artistas os Lanceiros Negros contemporâneos, que, ao invés de lanças, usamos cabeça, dança, música, teatro, cinema e poesia para a nossa peleia — aponta o ator, que se diz ansioso para ver o projeto nas telas de cinema.
Jackson Antunes, que dá vida ao general Antônio de Souza Netto, diz-se grato pela oportunidade de poder representar um personagem tão icônico para a cultura do Rio Grande do Sul, Estado pelo qual ele afirma ter uma imensa admiração justamente por preservar a sua história e seus heróis.
— A experiência foi ótima. E o diretor, acostumado a fazer isso, quer contar a história, mas não como as pessoas enxergam aqueles personagens, como se fossem estátuas de pedra, de mármore. Esses personagens são gente, são alma, têm coração. E, por isso, se criou um ambiente tão descontraído no set, porque éramos todos pessoas de carne, osso, alma e coração — conta.
Apesar do orçamento ser enxuto, sequer "fazendo cócegas" no valor utilizado por produções consideradas pequenas, de acordo com o diretor, a equipe inteira está acreditando no projeto, fazendo muito com pouco. Assim, o longa-metragem conta com 20 atores que terão seus personagens desenvolvidos, além de mais de 60 coadjuvantes que trabalharão não apenas em Porto Alegre, mas também no interior, como na cidade de Vacaria, onde serão simulados os campos de batalha. E, para tal, até computação gráfica será utilizada, transformando o momento em uma sequência lúdica, que conversa com o restante da obra.
É lá em Vacaria, por exemplo, que Werner Schünemann participará de diárias extras, uma vez que insistiu com a produção que o seu personagem não poderia aparecer apenas em cenas de resoluções burocráticas da Revolução Farroupilha.
— Tem que ter uma cena do Bento andando a cavalo em uma pradaria, por exemplo. Ele merece, né? — questiona o ator que, alinhado com a letra da música que cantou no Palácio Piratini, não esconde que o seu ídolo ainda é o mesmo.