Vencedor do festival É Tudo Verdade em 2019, o documentário Cine Marrocos estreia quinta-feira (3) nos cinemas — em Porto Alegre, está em cartaz no Espaço Itaú de Cinema, com sessão às 17h30min. Dirigido por Ricardo Calil (de Narciso em Férias e Uma Noite em 67), o filme acompanha moradores de uma ocupação instalada em um histórico cinema de São Paulo, que recriam cenas de clássicos apresentados no mesmo local há seis décadas.
O Cine Marrocos foi inaugurado em 1951, em um imóvel que tem 12 andares e três blocos. Em 1954, o espaço foi responsável por sediar o primeiro festival internacional de cinema do Brasil, com participação de astros de Hollywood e mestres da direção. Após ser tombado pela prefeitura de São Paulo e encerrar suas atividades em 1994, o prédio foi desapropriado em 2010.
Três anos depois, passou a ser ocupado pelo Movimento Sem Teto São Paulo (MSTS). A reintegração de posse ocorreu em 2016. Em agosto, uma operação policial prendeu líderes do movimento por suspeita de envolvimento com a facção PCC. Segundo a polícia, o espaço era usado como ponto para distribuição de drogas e armas. Desde estão, o prédio está fechado e sem uso.
O documentário foi rodado em 2015, enquanto o prédio era ocupado não só por brasileiros sem-teto, mas também por imigrantes latino-americanos e refugiados africanos. A equipe de Calil exibiu os filmes do festival de 1954 e convidou os moradores para uma oficina de teatro. Ao final do workshop, os integrantes da ocupação reencenaram cenas dos filmes que assistiram – como Crepúsculo dos Deuses e Júlio César –, atuando como se fossem estrelas da era de ouro de Hollywood.
No entanto, o documentário atrasou – a compra dos direitos dos filmes exibidos em 1954 só foi viabilizada mais tarde – e só foi ter sua primeira exibição em 2018.
A seguir, Calil fala sobre o projeto, a ocupação e a adesão dos sem-teto ao documentário.
Qual foi o ponto de partida para o filme?
A ideia nasceu no começo de 2015 quando li uma notícia sobre a ocupação no antigo Cine Marrocos. A história da sala era muito interessante, pois foi inaugurada em 1951 como o cinema mais luxuoso da América do Sul. A ocupação também parecia interessante, pois tinha muitos refugiados africanos, imigrantes, comunidade LGBT+, entre outros. Era um universo muito rico. Marquei uma visita, e foi fascinante. Era um espaço que tinha todo o luxo ainda de uma parte da arquitetura do cinema, da parede vermelha, da escultura de gesso. Ao mesmo tempo, havia gente dormindo em dormitórios com divisórias de escritório.
E a sala de cinema?
A sala de exibição estava trancada. Não tinha sido ocupada. Pedi para abrir, visitei. Estava sem tela, sem cadeira, sem nada. Bateu aquela melancolia de ver uma sala fechada. Uma cena triste. Na hora da visita, pensei em reabri-la, nem que fosse provisoriamente. De cara, veio a ideia de exibir os filmes do festival de 1954, que foi, supostamente, o auge do cinema. Poderia ser interessante para os moradores. Em seguida, veio a ideia de promover uma oficina para eles. Na hora foi um gesto intuitivo, mas depois entendi que foi um modo de aprofundar o choque entre esses universos. Lá havia juntos o luxo e a precariedade, o passado do cinema e o presente da ocupação. E também brincar de fazer um encontro entre realidade e ficção.
É um choque entre o glamour do velho Cine Marrocos com uma grande ocupação de pessoas que vivem à margem da sociedade. A ideia era trazer essa dicotomia?
A ideia surgiu espontaneamente, mas acho que esse gesto de exibir os filmes para eles e a ideia de fazer oficina têm significados. Uma é de reocupar um espaço cultural, um espaço simbólico do cinema. Oferecer esses filmes para pessoas que, em geral, não tem acesso ao cinema. Você trabalha com moradores que para muita gente são invisíveis e dá uma visibilidade a elas, deixando-as serem estrelas. São pessoas que muita gente vê como invasores ou bandidos. Mas que, com oportunidade, podem mostrar a sua força e a sua beleza.
Se eles quiserem ou tiverem a chance, podem ser o Marlon Brando em ‘Júlio César’, a Gloria Swanson em ‘Crepúsculo dos Deuses’, e assim por diante.
Parte da sociedade criminaliza as ocupações de sem-teto. O documentário os traz como pessoas em situação de vulnerabilidade, em busca de moradia. Pela sua convivência, que tipo de pessoas você encontrou no local?
A ocupação tinha esse dado da diversidade muito forte. Trabalhamos com um grupo de uns 30 moradores que fizeram a oficina. Conhecemos um por um. E você acaba encontrando histórias de vida muito ricas. De pessoas que têm de batalhar em superações cotidianas. Por exemplo, o Junior Panda Badibanga, um jornalista do Congo que era filho do ministro da Defesa daquele país. Seu pai foi assassinado pelo ditador local, e ele fugiu para cá. Quando os conhecemos um pouco mais, vemos que são pessoas que, em algum momento, passaram por alguma situação que os forçaram a buscar abrigo na ocupação. Não era a primeira escolha deles, mas as circunstâncias da vida os levaram para lá. Ao meu ver, tinham todo o direito de ocupar um lugar que estava totalmente abandonado, sem nenhuma função social. A ideia do filme é mostrar a história dele e que são pessoas com enorme capacidade. Também visa combater esses estigmas sociais, que os classificam como bandidos, invasores. Tirar um pouco as etiquetas deles. Se eles quiserem ou tiverem a chance, podem ser o Marlon Brando em Júlio César, a Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses, e assim por diante.
A narrativa transita entre a oficina, as cenas mesmas do filmes clássicos, as reencenações feitas pelos moradores e os depoimentos deles. É um mosaico metalinguístico. Como foi essa construção?
Tem metalinguagem. Estamos num cinema, falando de cinema e fazendo cinema. Há filmes dentro desses filmes, muitas camadas. É um mosaico, sim. Foi um grande desafio para a montadora, que é a Jordana Berg. Dei uma canseira nela, pois precisava conjugar muitos materiais diferentes. Ela fez um trabalho excepcional para dar uma coesão em algo que foi sobretudo uma experiência de vida tanto para a equipe e quanto para os moradores. Ela deu uma cara àquilo.
Que resultado você observava na reencenação dos moradores? Eles davam novo sentido aos filmes?
Teve casos que seguiram à risca os filmes. Mas a interpretação, o corpo e a entonação acabavam dando um novo sentido à cena. Há dois exemplos. Primeiro, Panda foi interpretar um piloto de avião francês de A Grande Ilusão, de Jean Renoir. É um personagem capturado pelos alemães na Primeira Guerra Mundial que tenta fugir. Panda fez a cena em francês e depois em inglês, e os dois resultados ficaram bonitos. Até que ele quis filmar em sua língua, que é lingala, do Congo. Aí a cena ganhou mais força. Quando ele decidiu se colocar e, de certa forma, relacionar a experiência dele com a do personagem, a cena cresceu muito. O outro exemplo é o do rapper camaronês Yamaia Mohamed, que foi encaminhado para fazer uma cena de Marco Antônio em Júlio César. O Ivo Muller, que é o preparador de elenco, o desafiou: "E se você fizesse um rap com isso?". Ele ficou inseguro num primeiro momento, mas encarou. Pedíamos para ele mostrar a letra, mas ele sempre repetia que ainda não estava pronta. No dia da filmagem, fez para valer. Era um monólogo de Shakespeare revisto pelo diretor e roteirista Joseph L. Mankiewicz, que, de repente, virou um rap do Yamaia cantado em francês, na escadaria do Cine Marrocos. É um momento tem um encontro múltiplo de significados.
Durante as filmagens, o líder da ocupação era o Vladimir Ribeiro Brito. No ano seguinte, ele foi preso por tráfico. Ele também tinha uma particularidade por ser um líder de ocupação com afinidade ao PSDB. como foi o encontro com ele?
Quando chegamos lá, não sabíamos de nada. Foram duas surpresas do processo. Ouvíamos boatos, nada que a gente pudesse dizer: “Uau, esse cara é particular”. Quando o entrevistamos e ele contou ser tucano, foi uma surpresa para a gente. Não é um partido que lida, em geral, com esse tipo de movimento social. Depois, quando a gente já tinha acabado a filmagem, veio a acusação de que ele estava ligado ao PCC. Foi outra surpresa. Tivemos que decidir o que fazer com essa informação, pois não estava no plano. É um filme sobre um processo artístico, só que esses dados da realidade mudaram o destino da ocupação. Com a prisão dele, o movimento se enfraqueceu e ficou mais fácil fazer a reintegração de posse. Decidimos incluir no filme essas informações. É como se tivéssemos criado com as oficinas um intervalo de fantasia dentro da realidade dos moradores. Fizemos um investimento na ficção, mas a realidade sempre bateu à porta. Mas há uma diferença entre lideranças e moradores. Todos os moradores com os quais a gente conviveu são pessoas batalhadoras, que ralam honestamente para ganhar a vida. No caso dessa ocupação específica, as lideranças eram questionáveis. Isso também não é a regra das ocupações. É uma exceção.
De que maneira essa experiência foi transformadora para os moradores? Alguém se descobriu ali?
Todos que fizeram a oficina falam do período como um momento especial. Como um intervalo de fantasia em uma realidade muito dura. Um respiro. Há casos de pessoas que insistiram na atuação e estão trabalhando com isso, mas é uma minoria. Gosto de pensar que foi transformador porque foi uma experiência bonita e marcante, de muita entrega à essa brincadeira de ficção. Não posso dizer que a vida deles foi outra depois daquilo, porque eles enfrentam uma realidade muito dura. Teve gente que foi morar na rua depois da reintegração de posse. Teve gente que saiu do Brasil para tentar uma vida melhor. Tem gente que está em outra ocupação.
Qual a atual situação do Cine Marrocos?
Desde a reintegração de posse, o prédio está fechado. Havia um plano da prefeitura para usar o espaço para a Secretaria Municipal da Educação, mas isso não foi adiante. Fecharam a entrada com tijolos. É muito triste, pois aquilo foi um cinema um dia. Em outro momento foi uma casa. Nas filmagens, ele foi as duas coisas. Parte da utopia daquilo lá era fazer as duas coisas funcionar ao mesmo tempo. Mas o poder público de São Paulo decidiu que aquilo lá deveria ser nada. Só um prédio fantasma.