No início de julho, a atriz Brie Larson decidiu começar um canal no YouTube. O primeiro vídeo, com cerca de 20 minutos, não foi mais do que uma apresentação: ela contou as motivações para iniciar o projeto, falou de sua vontade de fazer conteúdos importantes (e também bobos) na internet e contou até com a participação da mãe para falar de culinária. Poderia parecer inofensivo, mas no dia seguinte já acumulava dezenas de milhares de reações negativas. Agora, já são centenas de milhares.
Esse é mais um capítulo na história de ódio de parte do público contra a atriz, vencedora do Oscar com O Quarto de Jack (2015), que alcançou à fama internacional no papel de Capitã Marvel nos cinemas. A figura de Brie muitas vezes se funde com a da própria personagem e, em certos redutos, sobram ofensas para as duas.
Primeira super-heroína da Marvel a receber um filme solo, dentro do MCU, os pedidos de boicote a Capitã começaram assim que as notícias sobre o posicionamento feminista de Brie se tornaram manchetes. E, mesmo depois do filme ser uma das maiores bilheterias de 2019, ações como uma petição online para que ela fosse substituída do papel foram realizadas.
Forte, inteligente, sarcástica e arrogante, a Capitã Marvel de Brie Larson, no filme de Anna Boden, nem ao menos sorri. Ou, pelo menos, não distribui sorrisos com a facilidade da Mulher-Maravilha de Gal Gadot. Nem tenta ser sedutora como a Viúva Negra de Scarlett Johansson.
A comunicadora Caroline Kuviatkoski, que apresentou no último ano um estudo sobre a recepção dos filmes Capitã Marvel (2019) e Mulher-Maravilha (2017), destaca que está tudo ligado ao que se espera de uma mulher na sociedade e nas telas:
— É aquela história: muitas pessoas acham que as mulheres podem ter espaço, mas nem tanto. Elas devem romper padrões, mas não todos. Podem ser feministas, mas sem perder a elegância.
Gal Gadot, por exemplo, tende a manter um discurso mais cortês contra o sexismo, enquanto Brie Larson parte para o enfrentamento que tanto incomoda. Para a pesquisadora, o favorecimento de Gadot é reflexo de ideias ligadas aos papéis de gênero, segundo as quais as mulheres precisam ser sempre "educadas e meigas".
Novamente, há um paralelo com as personagens. Se a Mulher-Maravilha de Gadot é igualmente superpoderosa, comparada a Capitã, em outros aspectos elas não poderiam ser mais diferentes. Feminina (não lhe faltam as pernas e o busto expostos, em sua armadura), a personagem da DC esbanja até inocência na falta de seu conhecimento do mundo mortal. Encantamento. E há um claro interesse romântico por seu coadjuvante masculino.
As diferenças contam a seu favor. Enquanto Capitã Marvel mantém no site Rotten Tomatoes uma média de 78% de aprovação com os críticos, o percentual baixa para 48% com a audiência geral; Mulher-Maravilha tem 93% de aprovação com o público especializado e 87% na avaliação geral. Ou seja: é mais fácil aceitar o protagonismo feminino dócil, que enfrentar a petulância da Capitã Marvel — que, na verdade, não possui uma personalidade mais arrogante que do Doutor Estranho ou mesmo Tony Stark.
— O mundo dos super-heróis foi, por muito tempo, baseado em estereótipos de gênero. As histórias eram repletas de mocinhas indefesas ou vilãs no estilo femme fatale. Os homens representavam o ideal máximo de força, poder e masculinidade. E a gente não muda uma construção de décadas do dia para a noite. A nossa sociedade ainda é machista e a luta contra isso é constante — explica a pesquisadora.
Representatividade
Capitã Marvel conquistou a quinta maior bilheteria de 2019, com uma arrecadação de US$ 1,128 bilhões, segundo o Box Office Mojo. O filme ficou à frente de produções como Coringa e Star Wars: A Ascensão Skywalker. Em 2017, Mulher-Maravilha teve um desempenho semelhante, ficando em 10º lugar, com arrecadação de US$ 821,8 milhões.
Produtores e estúdios não ignoraram esse sucesso: a sequência de Mulher-Maravilha estava prevista para 2020. Arlequina em Aves de Rapina chegou aos cinemas antes da pandemia, em fevereiro. E, mesmo no streaming, estrearam títulos como The Old Guard. No futuro, são esperados lançamentos como Thor: Amor e Trovão, com Natalie Portman em posse do Mjölnir; além de séries como She-Hulk e Ms. Marvel.
Uma das apostas da Marvel para este ano era justamente o filme solo de Viúva Negra. A personagem é uma velha conhecida dos fãs, introduzida ainda em 2010 no longa Homem de Ferro 2. A demora em lhe dar protagonismo reflete uma tradição dos quadrinhos, em que as heroínas muitas vezes surgiram primeiro como coadjuvantes, antes de ganhar destaque (a Capitã Marvel nasceu para ser interesse romântico de outro herói, nas HQs).
— Isso também acontece em outros gêneros, como a ação e a aventura. A própria diretora de Mulher-Maravilha (Patty Jenkins) afirmou que produções como Jogos Vorazes abriram as portas para que a Wonder Woman pudesse ter o seu filme solo — comenta Caroline, citando a série de filmes protagonizada por Jennifer Lawrence.
Mesmo que não pelos motivos mais nobres, a nova onda de filmes protagonizados por personagens femininas fortes pode ter efeitos positivos na sociedade. De acordo com a pesquisadora, essas narrativas contribuem para mudar a conduta esperada das mulheres, além de poder alterar a percepção que elas têm de si mesmas.
— Assistir a mulheres em posições de poder nos filmes tem um potencial transformador na visão das mulheres sobre si mesmas — declara.
Mas Caroline tampem alerta que há um longo caminho pela frente:
— Ainda não temos mulheres negras, gordas ou LGBTQIA+ com seus filmes solo. Capitã Marvel e Mulher Maravilha certamente são um começo promissor, mas é preciso ampliar as possibilidades de protagonismo, para que todas as mulheres possam se sentir poderosas.