Uma live sobre o filme gaúcho Inverno (1983), realizada na última sexta-feira (3), acabou gerando um debate sobre racismo que repercutiu no setor audiovisual do Estado. Promovida pela Associação Profissional dos Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS), a transmissão ao vivo contou com a participação de profissionais envolvidos no longa, como o diretor Carlos Gerbase e as atrizes Luciene Adami e Luciana Tomasi, que também trabalhou como produtora do longa-metragem.
Após 25 minutos de live, em uma pergunta sobre as influências estéticas de Inverno, que lembravam o cinema francês, segundo o mediador Giordano Gio, Luciana citou os sobrenomes dos profissionais como justificativa:
"Tu tá falando com um Schünemann, com uma Tomasi, uma Adami, um Gerbase... Não adianta a gente tentar fazer um filme da senzala, entende? Não seria o nosso melhor. Então cada um tem que mostrar o que curtia e como é que veio. Então eu acho que eu tava totalmente ambientada. Inclusive eu tenho sangue francês também, não adianta, então cada um faz da sua história. É um filme roots, total", disse Luciana.
Após a manifestação, o debate seguiu normalmente, durando quase duas horas no total. A expressão "filme de senzala" repercutiu negativamente entre os espectadores da live, que fizeram comentários condenando a fala. Única negra participando da conversa sobre Inverno, a diretora e roteirista Mariani Ferreira respondeu a Luciana Tomasi ainda durante a transmissão, dizendo que "Porto Alegre também é de Oliveira Silveira".
— Um dos grandes erros foi a live não ter sido interrompida. Você pode ver no vídeo, eu estava emocionada, com a voz embargada. Não se pode reduzir a experiência negra por algo que foi inventado por europeus, como foi a senzala. Não se pode reduzir o cinema a isso. É muito violento quando tu reduz toda essa experiência, toda essa cultura rica, à algo ligado à escravidão — comentou Mariani a GaúchaZH nesta segunda-feira (6).
O Coletivo Macumba Lab, que representa profissionais negros e negras do audiovisual no Rio Grande do Sul, repudiou o fato de os negros ainda serem associados apenas à escravidão.
"Nossa existência é muito maior do que apenas a história da dor que nossos ancestrais sofreram nas mãos dos europeus e seus descendentes. Filmes feitos por pessoas negras são filmes e ponto. Cineastas pretos têm abordado em seus trabalhos diversos assuntos, com sensibilidade e talento. Lamentamos profundamente que em 2020 ainda se conheça tão pouco sobre a cultura brasileira", diz parte da nota divulgada pelo grupo.
Remoção do vídeo
Dois dias depois da live, no domingo (5), a APTC divulgou uma nota decidindo retirar o vídeo de seus canais de forma temporária. A entidade afirma que "manifestações como aquela são intoleráveis e não soubemos reagir da melhor maneira em uma transmissão ao vivo".
Para GaúchaZH, a presidente da associação, Daniela Strack, disse, por telefone, que não poderia comentar sobre o caso, mas afirmou que o vídeo da live será recolocado em breve nos canais da associação com um aviso inicial contextualizando a questão de racismo "para quem ninguém se sinta mal", explicou.
Mariani Ferreira condenou a remoção do vídeo:
— Racismo é crime. E o vídeo é uma prova de que o racismo aconteceu. A resposta pública também demorou bastante. Quando a gente vê uma situação de injustiça, a gente precisa responder com rapidez. As palavras ditas na live são palavras que exemplificam uma estrutura racista — afirmou.
A reportagem entrou em contato com Luciana Tomasi, que também disse não poder se manifestar sobre o assunto. A produtora pediu desculpas pela fala em um texto divulgado nas redes sociais, assinado por ela e por Gerbase:
"A palavra 'senzala' foi usada de forma infeliz e racista. Além disso, a discussão sobre o machismo no filme foi por nós abordada de forma superficial. Assumimos estes erros e tentaremos melhorar. Enviamos um pedido de desculpas à cineasta Mariani Ferreira, mas agora fazemos publicamente. Não conseguíamos durante a live debater e ler os comentários ao mesmo tempo, então não foi nosso intento ignorar a discussão sobre racismo que estava acontecendo", diz a publicação.