Após a plataforma de streaming norte-americana HBO Max retirar de seu catálogo o clássico E o Vento Levou (1939), na terça-feira (9), teve início uma discussão sobre a validade da ação. A decisão foi tomada após diversas pessoas apontarem a representação racista dos personagens escravizados na produção.
Ambientado na Guerra Civil dos Estados Unidos (1861—1865), o foco do filme está no romance entre Scarlett O'Hara (Vivien Leigh) e Rhett Butler (Clark Gable). Mesmo com quatro horas de duração, a obra foi um sucesso de público, sendo até hoje uma das maiores bilheterias da história (quando são calculados os ajustes pela inflação). Também foi celebrado pela crítica, conquistando oito estatuetas do Oscar.
Segundo a HBO Max, o longa será disponibilizado novamente na plataforma de streaming, em uma data ainda a ser definida, junto com uma discussão de seu contexto histórico.
A seguir, confira o que artistas gaúchos pensam sobre a decisão:
A retirada do filme revela duas coisas: por um lado, o racismo que avança de modo cada vez mais sofisticado, e de outro, uma sociedade mais atenta que desenvolveu, em certa medida, a perspicácia de identificar essas marcas racistas históricas. No entanto, a queda desses símbolos que por muito tempo passaram ilesos de críticas pode também abrir espaço para o esquecimento. É preciso cautela. Na literatura, isso já vem sendo discutido há anos com o caso emblemático do Monteiro Lobato. O que vale para o escritor brasileiro, também vale para o filme: não negar o discurso da racista, contextualizar a obra e discutir o seu valor estético. O desejo de fazer justiça não pode passar por cima da memória, pois é com ela que conseguimos julgar a história.
— Jeferson Tenório, escritor
Eu sou contra a retirada do filme. Por mais racista que o filme seja, há impacto histórico antropológico. Não podemos deixar de assistir. Mesmo que haja essa abordagem negativa. Seria o mesmo que retirar todos os filmes de western, todos os clássicos do John Ford, que também são filmes racistas. Infelizmente a nossa sociedade é perversa. Que esses filmes sirvam ao menos de alerta.
— Carlos Ferreira, quadrinista
Com relação ao filme E O Vento Levou, foi um ganhador de Oscar, feito em 1939, mas é um filme que traz um esteriótipo dos escravizados de uma forma muito bestializada. Os senhores de escravos são extremamente bondosos, enquanto os escravos, muito subservientes. Ou seja, pessoas dóceis. Dai a gente vai dizer: 'Tá, isso deve ser mostrado? Não deve ser mostrado?'. Eu acho que é uma representação não adequada, tanto naquela época, como no momento atual. Eu acho que existem tantos outros filmes que tratam da escravidão e retratam a questão de rebeldia dos escravos, de não aceitar aquela situação e também a forma como os senhores de escravo tratavam os escravos. Então se é para representar a questão da escravidão, então que sejam filmes que retratem realmente essa maledicência, toda essa história cruel com relação aos escravizados da diáspora.
Se deveria ser retirado ou não? Eu acho que tem uma questão, que tem existem outros filmes melhores que retratam a questão da escravidão e que podem melhorar as relações de equidade étnico-raciais. Ou seja, num momento em que nós vivemos situações ainda, apesar do final de toda a abolição da escravatura nos países em que vivemos, ainda existe uma diferença muito grande de igualdade, entre étnico-racial. Então, para melhorar essa discussão e para se mostrar realmente a verdade do que aconteceu, que se mostre filmes que representem realmente a realidade do que foi a escravidão. Independente de ser E O Vento Levou ou qualquer outro filme, que se mostre o que foi a violência desse sequestro desses seres humanos que foram trazidos a força de outro continente. Acho que existem outros filme, muito melhores, que podem retratar a escravidão trazendo uma história real e não uma história tão estereotipada como E O Vento Levou.
Com relação à própria literatura, a gente sabe que existem livros clássicos que retratam esses escravizados ou descendentes de escravizados com esses estereótipos ainda submissos ou ainda com expressões extremamente racistas, dentro da sua representação, e que não agregam nada nem ao passado, nem nesse momento. Então, por que permanecer trazendo à vitrine, digamos, esse tipo de representação enganosa? Que se traga, então, uma representação verdadeira do que foi o horror da escravidão.
— Lilian Rocha, poeta