Porto Alegre recebeu nos últimos dias lenda do cinema. O produtor e diretor americano Roger Corman, de 93 anos, deixou a Capital na manhã desta segunda-feira, após participar ativamente da edição 2019 do Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre – Fantaspoa. Entre quarta-feira (29) e domingo, o cineasta participou de três sessões comentadas de seus filmes na Cinemateca Capitólio e ministrou uma masterclass na Sala Redenção da UFRGS.
Com seu nome nos créditos de mais de 400 longas-metragens, Corman se consagrou em Hollywood assinando filmes lucrativos que combinavam baixo orçamento e muita inventividade, entre eles clássicos como A Loja dos Horrores (1960). Ajudou também a revelar a revelar atores como Jack Nicholson e Robert De Niro e tornou-se mentor de cineastas como Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich, Martin Scorsese e James Cameron.
– Acho que mais vencedores do Oscar começaram a sua carreira comigo do que com qualquer outro cineasta – comenta.
Corman cumpriu com bom humor e energia uma programação intensa em Porto Alegre, mas sem agenda de entrevistas. Em combinação com a produção do Fantaspoa, a reportagem de Zero Hora enviou perguntas repassadas ao diretor. O resultado é o depoimento abaixo.
Em 1990, o senhor escreveu um livro de memórias com o título How I Made a Hundred Movies in Hollywood and Never Lost a Dime (ou "como eu fiz cem filmes em Hollywood e nunca perdi um centavo", em tradução livre). Desde aquela época o senhor conseguiu continuar não perdendo um centavo na realização de filmes?
Na verdade, o título do livro é um tanto ilusório e foi escolhido pela editora. Quando vi, telefonei para eles e disse: "Olha, eu fiz bem mais do que 100 filmes e eu perdi dinheiro algumas vezes". Aí eles me responderam: "Então quer dizer que todos os títulos dos filmes que você fez refletiam exatamente o conteúdo de tais filmes?" Aí eu disse: "Ah, tá bem, chame o livro como você quiser".
O senhor tem uma carreira extremamente produtiva, dirigiu mais de 50 filmes e produziu mais de 400. Tem alguns favoritos ou especiais entre os que fez?
Em geral, os filmes que eu dirigi e produzi são os que eu tenho mais apreço. Mas tem sim alguns filmes que eu apenas produzi dos quais tenho ótimas lembranças.
O avanço da tecnologia produziu câmeras e equipamentos que permitem que um adolescente em seu quarto faça filmes com o mesmo espírito com o qual o senhor fez os seus. Como vê essa transformação?
O conceito básico de como um filme é feito em particular não foi alterado. Então, as mesmas regras de antes ainda são válidas hoje em dia. Por outro lado, eu escrevi o livro quando estávamos ainda filmando em 35 mm. Hoje nós trabalhamos com filmagens digitais. Então, isso mudou muito o lado da produção. Hoje em dia, a produção é mais fácil e mais eficiente. Quando eu trabalhava com 35 mm, nós utilizávamos câmeras grandes. Elas eram grandes, pesadas, robustas e era difícil trabalhar com elas nas locações. Devemos considerar que elas haviam sido originalmente desenvolvidas para serem utilizadas em estúdios fechados. Mas com a mudança das filmagens para locações reais, ao invés de estúdios, elas se tornaram cada vez mais complexas de serem utilizadas. Hoje em dia, as câmeras digitais são tão leves e tão fáceis de se trabalhar. É muito mais fácil utilizá-las nas locações. Não apenas as câmeras, mas tudo mais. Os suportes de câmeras e tudo mais. Tudo é mais fácil e mais leve. Gostaria de ressaltar que as luzes também são muito mais melhores de se trabalhar hoje. As luzes de LED são mais fáceis de se movimentar. Uma só pessoa é capaz de cuidar de todas elas. As luzes grandes que utilizávamos antes do LED eram gigantescas. Uma delas era chamada "Brute". Apenas para movimentar a Brute eram necessárias duas pessoas. Então, a produção de filmes realmente se tornou muito mas fácil e, ao mesmo tempo, eficiente.
Ao mesmo tempo, as grandes empresas do setor ainda estão presas em um enorme e muito caro sistema de produção e distribuição. O dinheiro em Hollywood está tentando substituir a imaginação?
De uma certa maneira sim. Você vê os filmes da Marvel e outros filmes que são feitos com 100 ou 200 milhões de dólares. E os efeitos especiais são verdadeiramente maravilhosos. Nós nunca vimos efeitos especiais deste porte na história. O uso de green screen e de CGI são incrivelmente superiores ao que era feito mesmo cinco anos atrás... E se você pensar em quando eu estava fazendo filmes, 20, 30, 40 anos atrás, a diferença é gigantesca. O problema é que, em muitos desses filmes, os efeitos especiais são mais importantes do que o roteiro em si. Na minha opinião, hoje existe uma fraqueza nos roteiros. E, essencialmente, o verdadeiro trabalho de um cineasta, é desenvolver bem um roteiro, é entregar uma narrativa. Uma das poucas pessoas que eu diria que consegue fazer as coisas bem hoje em dia, a mescla entre história e efeitos, começou a carreira comigo, Jim (James) Cameron. Acho que ele lida com efeitos especiais melhor do que qualquer outro diretor, porque sempre tem um forte lado narrativo. Ele tem bons atores, com boas performances, efeitos especiais excelentes que efetivamente contribuem no desenvolvimento da história.
Muitos grandes nomes da indústria começaram a trabalhar com o senhor. O senhor vê um cineasta hoje que pode ser considerado um herdeiro?
Eu diria que é um exagero dizer isso... Mas sem falsa modéstia, eu ajudei muitas pessoas a iniciarem suas carreiras. Especialmente diretores. Eu acho que mais vencedores do Oscar começaram a sua carreira comigo do que com qualquer outro cineasta, por exemplo, temos Francis Ford Coppola, Jim (James) Cameron, Martin Scorsese, Jonathan Demme, Ron Howard e quando eu fico falando sobre isso, eu sempre esqueço de alguém. E depois a pessoa me telefona e fala: "Ei, Roger, você esqueceu de mim!" E também, outros profissionais que não venceram Oscar e alguns atores excelentes, Peter Bogdanovich, Joe Dante, Allan Arkin, e diversos outros. Também quero ressaltar algumas diretoras: Amy Jones, Penelope Spherris, Katt Shea, Stephanie Rothman.
E quem seria um herdeiro de Roger Corman?
Um dia destes eu estava dando uma entrevista e me perguntaram se existe alguém fazendo hoje em dia o que eu fazia antigamente. Os tempos mudaram. Não é possível fazer exatamente o mesmo. Mas tem um nome que é mais significativo, considerando-se as mudanças que ocorreram. E este é o Jason Blum (produtor que ganhou notoriedade com filmes de horror baixo orçamento como a série Atividade Paranormal e hoje assina a produção de filmes como Corra! e Nós, de Jordan Peele). Curiosamente, na mesma semana, perguntaram ao Jason Blum em uma entrevista se ele inspirava a carreira dele em alguém e ele disse: Roger Corman. Então, Jason e eu nos reunimos depois disso e ele é um cara excelente. Mas eu diria que ele fez algo que eu não fiz. Ele diversificou e começou a fazer alguns filmes de grande orçamento. Ele está tendo uma carreira realmente maravilhosa.
Como o senhor vê o surgimento de novas plataformas de distribuição digital? Elas de alguma forma facilitam os filmes baratos e criativos como os que o senhor produziu? Ou ainda estão presas a ideias alimentadas por algoritmos?
As distribuidoras sempre fazem o melhor para ganhar dinheiro. Este é o propósito da existência delas. Mas eu acho que as plataformas de distribuição, como Netflix e Hulu, estão prestando um serviço essencial, principalmente para cineastas estreantes e de médio porte. A razão principal é que, quando eu comecei na indústria, no final dos anos 50 e até o início dos anos 90, mais ou menos, qualquer filme de qualidade aceitável tinha um lançamento completo nos cinemas. No final dos anos 80, isso começou a mudar e a diminuir. A verdade depois disso é que filmes de baixo orçamento quase não chegavam aos cinemas. Ocasionalmente um filme de baixo orçamento de horror, ou de cinema de "autor" que mostrasse um grande talento por trás das câmeras ganhava um lançamento nos cinemas, mas além disso, era quase impossível chegar aos cinemas. Hoje em dia, Netflix, Hulu e as outras estão levando adiante estes filmes de baixo orçamento, que sem estas plataformas poderiam nunca chegar aos olhos do público.