Fernanda Grabauska *
Parece adequado este texto começar com frases cifradas, para capturar a atenção do leitor: "Leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi."
"Escute, meu chapa, um poeta não se faz com versos."
"Como sou vidente, vivo tranquilamente todas as horas do fim."
Todas essas citações descrevem facetas distintas de um dos poetas mais misteriosos da Tropicália. E todas são declamadas em alguma altura do corajoso empreendimento cinematográfico que é Torquato Neto — Todas as Horas do Fim, documentário em cartaz em Porto Alegre (no CineBancários) que dribla a lamentável falta de memória audiovisual do Brasil para esmiuçar, com depoimentos e imagens de arquivo, a vida de seu personagem-título.
Chamado anjo torto do tropicalismo, o poeta, jornalista e cineasta Torquato Neto (1944— 1972) viveu seus 28 anos em uma sequência de rupturas. Como diz o poeta Waly Salomão, citando o também poeta Décio Pignatari, nos primeiros minutos do longa-metragem: "Na geleia geral brasileira, alguém tem que ser medula e osso".
Os diretores Marcus Fernando e Eduardo Ades reconstroem os momentos em que Torquato rompeu o cordão umbilical com Teresina (PI) e tocou-se para Salvador, para o Rio de Janeiro, para Londres; e de volta ao Rio e a Teresina. Incursionou na poesia, enxergou o valor da poesia musicada. Aproximou-se e afastou-se dos tropicalistas, foi um cronista de seu tempo na coluna Geleia Geral, do jornal Última Hora, e apropriou-se da câmera Super-8 para propósitos artísticos cinematográficos. Deixou canções gravadas nas vozes de Gal, Gil e Caetano, e também de Edu Lobo, Luiz Melodia e Geraldo Azevedo. Padeceu, no entanto, por um excesso de autocrítica — um desencanto com a vida agravado pela incerteza trazida pelo AI-5 na ditadura militar — e pela batalha contra o alcoolismo.
Se o filme esbarra na falta de registros mais formais (há apenas um áudio da voz de Torquato, fragmentado ao longo dos 80 minutos de narrativa), apresenta de forma sensível a atuação artística e a eterna insatisfação do piauiense. Os demônios que o levaram a se suicidar, no dia de seu aniversário de 28 anos, são discutidos de forma franca — talvez, demasiado reiterados — a partir de depoimentos de amigos como Caetano, Gil e Tom Zé e pela leitura de poemas e cartas na voz de Jesuíta Barbosa. A dramaticidade das declamações do ator, vale dizer, são um ponto alto do documentário — vão da ingenuidade infantil de versinhos escritos antes dos 10 anos à agonia de sua carta suicida, em um crescendo tão emocionante quanto calculado. Fotos de Torquato e trechos de suas aparições como ator em filmes como os de Ivan Cardoso inserem corporalidade no documentário.
Torquato Neto — Todas as Horas do Fim triunfa ao dar merecido espaço, como descreve Waly Salomão, àquele que foi "o melhor esboço do mito do poeta cult do Brasil". Mostra a relutância de Torquato em desabar diante do que considerava vulgaridade na indústria cultural de sua época, sua relação de amor e ódio com o ímpeto tropicalista de abraçar todas as possibilidades da vida no país sob a ditadura e sua relação de amor e ódio com o ímpeto pessoal de abraçar todas as possibilidades da própria vida. E termina projetando o que faria caso seus 28 anos houvessem se tornado 29. Como lamenta Gil: "Ele não nos deu a oportunidade de mais, pois achou que deveria partir".
* Jornalista
Torquato Neto - Todas as Horas do Fim
De Marcus Fernando e Eduardo Ades.
Documentário, Brasil, 2017, 88min.
Em cartaz no CineBancários, com sessão às 17h.