No intervalo de dois anos, entre 1967 e 1969, o Brasil se viu diante de um paradoxo: à sombra da repressão e da censura impostas pela ditadura militar, germinou uma efervescência cultural que comungou música, cinema, artes plásticas e literatura em uma, de certa forma involuntária, manifestação coletiva de criatividade, experimentação e inconformismo. Esse ato de resistência pacífica teve enorme impacto, dimensionado pelo fato de ainda hoje seus principais protagonistas serem nomes de referência em seus respectivos campos. Mais efusivo e ruidoso segmento dessa onda, a Tropicália é tema do documentário homônimo que entra em cartaz nos cinemas nesta sexta-feira.
Embora o tropicalismo diga respeito ao inovador trem sonoro que misturou de Beatles a Luiz Gonzaga, pilotado no Rio de Janeiro pelos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil, o diálogo deles com artistas de vanguarda que revolucionavam seus quintais à época - Glauber Rocha no cinema, Helio Oiticica nas artes visuais, Zé Celso Martinez Côrrea no teatro e José Agrippino de Paula na literatura, entre outros - fez todos ergueram, mesmo que a contragosto, o estandarte do movimento. No vagão de Caetano e Gil estavam os também baianos Tom Zé e Gal Costa e os paulistas Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, dos Mutantes, além do maestro Rogério Duprat, arquiteto sonora da Tropicália.
O cineasta Marcelo Machado foi bastante feliz ao costurar o todo o contexto artístico - e também o político - na abordagem do universo musical, que é o foco do interesse maior de Tropicália. Esse é um recorte, aliás, recorrente nos documentários nacionais recentes sobre a MPB. Alguns personagens do filme já ganharam seus próprios documentários, caso de Caetano, Arnaldo Baptista e Tom Zé. A semente do tropicalismo também marca presença no ótimo Uma Noite em 67 - sobre o festival de música da Record que foi a estação de lançamento do foguete tropicalista.
- Meu grande objetivo era mostrar todos eles juntos. É fascinante como um grupo de pessoas com históricos e perspectivas diferentes conseguiu se reunir em um movimento como a Tropicália - diz a Zero Hora Marcelo Machado. - O contexto daquela época foi único.
Já na primeira cena, o documentário apresenta as muitas boas surpresas que virão amarrar a geleia geral. Mostra Caetano e Gil num programa da TV portuguesa, em 4 de agosto de 1969. A caminho do exílio em Londres com o amigo, Caetano decreta: "O tropicalismo está morto". A partir daí, o filme reconstitui seu nascimento e sua breve história com imagens raríssimas, algumas reveladas ao público pela primeira vez.
- Eu queria trabalhar com pesquisa de arquivo e fugir das entrevistas - explica Machado. - Questiono muito esse recurso no documentário. Tem quem faça isso muito bem, como o Eduardo Coutinho, mas não era o caminho para o meu filme.
Os depoimentos no documentário são poucos e bons, pois só fala quem ali teve papel de destaque. Surgem em material de arquivo, como Rogério Duprat, falecido em 2006, e nas entrevistas recentes com Caetano, Gil, Tom Zé e os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias - Rita Lee não quis conversa, mas "fala" por meio de documentário nunca finalizado sobre Gal Costa realizado por amigos do diretor.
- No início, eu tinha um pouco de reserva em usar depoimentos que não fossem registrados por mim - pondera Machado. - Mas não tinha como não dar voz a figuras fundamentais do movimento.
O diretor ressalta que as primeiras pessoas que entraram no projeto foram dois experientes pesquisadores, Eloá Chouzal e Antônio Venâncio, que assinam os principais projetos de memória musical do Brasil. Junto com eles, um advogado começou a lidar com a complexa questão do direitos autorais.
- Consegui usar 90% do material pesquisado. - Mas sinto não ter conseguido imagens em movimento do José Agrippino de Paula. Tinha uma no filme A Mulher de Todos, do (Rogério) Sganzerla. Localizei o produtor filme, Antônio Galante, em Curitiba, Mas ele me disse:"Fiz esse filme sem leis de incentivo, com dinheiro do meu bolso, e o preço é este". E era caro. Tudo bem, é direito de quem arriscou financiar um filme independente no Brasil. Como estabelecemos valores máximos para cada compra de direitos, ficou inviável. Também gostaria de ter usado comerciais como o dos Mutantes para a Shell, que davam ideia da popularidade que eles alcançaram.
José Agrippino, autor do livro-manifesto PanAmerica, um dos pilares teóricos do tropicalismo, participa com cenas do filme experimental que dirigiu, Hitler III Mundo. O cinema autoral brasileiro, a propósito, é muito citado em Tropicália. Perpassam o documentário, ou por ilustrar o espírito anárquico-criativo da época ou por registrar os tropicalistas no calor da hora, filmes como Terra em Transe e Câncer, de Glauber Rocha, Meteorango Kid, de André Luiz Oliveira, O Demiurgo, de Jorge Mautner, As Amorosas, de Walter Hugo Khouri, Opinião Pública, de Arnaldo Jabor, e Os Herdeiros, de Cacá Diegues.
Machado explica que a parte mais trabalhosa - e prazerosa - foi a garimpagem em arquivos pessoais. Com companheiros de exílio dos baianos e com amigos que passaram pel Europa à época, ele conseguiu registros do cotidiano dos expatriados em Londres. O documentarista inglês Murray Lerner lhe enviou filmes em 16mm espetacularmente preservados com a participação de Caetano e Gil no Festival da Ilha de Wight, o contraponto britânico à epifania hippie de Woodstcock. Chamam a atenção ainda os trechos do documentário Caetano/Gil/Gal, documentário inacabado pelo diretor Leon Hirszman que flagra Caetano e Gil nas ruas de Salvador, ao som de Back in Bahia, no retorno da dupla ao Brasil,em 1972.
A celebração não deixa da abordar pontos polêmicos do movimento, como sua rejeição por parte da militância de esquerda, que via os tropicalistas como alienados e "americanizados" - a reação é simbolizada no memorável pito que Caetano passou nos universitários que o vaiavam num festival. Também houve ciúme, rivalidade, e empresário que viu a onda como negócio lucrativo.
- O filme é um deleite para a geração que viveu isso, mas eu gostaria de chegar é no público jovem que não conhece essa história - diz Machado.