— Negar o direito à memória é uma forma de violência — afirma o museólogo Eráclito Pereira, professor adjunto do curso de Museologia da UFRGS. — Quando uma pessoa negra vai a um museu e não enxerga a sua história representada, ou a enxerga somente pela perspectiva da dor, esta é mais uma das muitas facetas violentas do racismo — detalha o pesquisador, somando-se ao movimento de profissionais da área museológica que reivindicam uma maior e mais abrangente representação da população negra nas instituições do Estado.
A demanda não é nova, mas ganhou maior notoriedade ao longo da última década, entrelaçada à ascensão do debate sobre o chamado racismo estrutural. O conceito, que joga luz sobre discriminações raciais que de tão enraizadas no seio da sociedade por vezes são assimiladas como naturais, é mobilizado por Pereira ao analisar a situação dos acervos museológicos do Rio Grande do Sul, deficientes quando se trata de representar a história e a cultura afro-gaúchas.
Nas reservas dos museus históricos, ainda são poucos os objetos que abordam a história dos negros para além do episódio da escravidão e valorizam suas contribuições para a formação do Estado. O cenário se repete em acervos de instituições de caráter artístico, igualmente incipientes no aspecto da representatividade, conforme detalha a historiadora e crítica de arte Izis Abreu:
— O Rio Grande do Sul construiu para si a imagem de ser uma pequena Europa. Isso fez com que todas as narrativas do Estado valorizassem a questão dos imigrantes europeus e apagassem a participação negra, o que ainda impõe uma série de consequências. Uma delas é a que nos leva a entrar em um museu de arte e ver poucos rostos negros retratados de maneira positiva, ter poucas obras assinadas por artistas negros nos acervos e perceber que o acesso ao mercado da arte é muito mais difícil para a população negra.
No caminho da reparação
Apesar do cenário ainda distante do ideal, iniciativas que visam à reparação vêm ganhando força em instituições museológicas do Estado, alinhadas a um movimento que é percebido também no restante do país. Exemplo disso é o Museu de História Julio de Castilhos, o mais antigo museu do Rio Grande do Sul, localizado em Porto Alegre, que tornou públicas as deficiências do próprio acervo e o desejo de formar uma coleção mais representativa e diversa.
A instituição lançou, em 2020, a campanha Acervo Negro do Museu Julio de Castilhos. Trata-se de uma convocação à população negra para que doe objetos, documentos, diários, cadernos de receitas, fotografias, peças de indumentária e outros itens que ajudem a construir uma outra narrativa histórica sobre os negros do Rio Grande do Sul, diferente da que vinha sendo endossada pelo museu desde sua fundação, em 1903.
— Percebemos que o nosso acervo negro resumia-se a uma coleção de instrumentos de tortura oriundos do período escravocrata. Estava evidente a necessidade de uma reconfiguração — conta Doris Couto, diretora do Museu Julio de Castilhos. — A campanha foi o modo que encontramos de publicizar às pessoas negras do Estado que a instituição reconhece a lacuna existente e almeja a formação de um acervo que possa contar melhor a história delas — explica.
O primeiro item a integrar o novo acervo negro do Julio de Castilhos foi um tambor sopapo, tido como símbolo da africanidade do Rio Grande do Sul. O instrumento, assinado pelo luthier pelotense José Batista, ingressou na coleção do museu em 2021, abrindo as portas para uma série de outros objetos.
Itens recebidos através da campanha formam a exposição Narrativas do Feminino, que atualmente ocupa uma das salas do museu, destacando a história de mulheres negras de relevância no Estado. Entre as peças, estão itens como fotografias, camisetas de movimentos sociais, faixas de concursos de beleza, artesanato e a blusa preferida da mestra griô Sirley Amaro, uma das mais destacadas lideranças negras do Estado, falecida em 2020. Já a coleção de instrumentos de tortura foi retirada de exposição e está atualmente guardada.
Impactos positivos
A instituição permanece interessada em receber doações que possam enriquecer seu acervo negro, ainda mínimo frente ao universo total de peças abrigadas. A intenção, contudo, é reservar um espaço expositivo fixo para as peças que remetem à história negra após a conclusão da reforma pela qual passa neste momento o museu, prevista para 2026.
Para além da ampliação do acervo, Doris celebra outro resultado importante trazido pela campanha iniciada em 2020: o maior número de pessoas negras que têm visitado a instituição desde então.
Izis Abreu aponta que o fenômeno tem uma explicação simples: todo ser humano quer se sentir representado. A historiadora da arte foi uma das curadoras da mostra Presença Negra no Margs, que esteve em cartaz no Museu de Arte do Rio Grande do Sul em 2022, reunindo mais de 250 obras de cerca de 70 artistas negros.
— Tivemos 14 mil visitantes na exposição, sendo a absoluta maioria do público formada por pessoas negras. É um número fantástico para uma mostra que não é de Bienal do Mercosul. E muitos dos visitantes nunca haviam entrado no Margs, mas passaram a frequentar o museu a partir da exposição. Isso demonstra a importância de as pessoas se reconhecerem nos espaços museológicos — relata Izis.
A exposição Presença Negra no Margs nasceu a partir de um exercício crítico da instituição de arte, semelhante ao que foi realizado pelo Museu Julio de Castilhos. Na ocasião, percebeu-se que das 5,5 mil peças que integravam o acervo do museu de arte, somente 125 eram de artistas negros e negras. A mostra foi o pontapé inicial de um processo de reformulação de acervo que permanece em curso, conforme a secretária estadual da Cultura, Beatriz Araújo:
— Os negros ainda são sub-representados, pois estamos lidando com séculos de apagamento, mas o nosso trabalho pela reparação desse cenário é contínuo. Temos atualmente uma política de aquisição de obras que prioriza trabalhos de artistas negros e quilombolas nos acervos das instituições de arte do Estado.
Segundo a secretária, a questão da representatividade é uma preocupação urgente da pasta, que se estende também às demais instituições museológicas do Estado — a exemplo do já citado Museu de Históra Julio de Castilhos, do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, do Museu de Arte Contemporânea do RS e do Museu Histórico Farroupilha, entre outros.