Quando Antonio Caringi chegava ao aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, vindo do Rio de Janeiro ou de São Paulo, onde manteve seus ateliês, costumava pregar uma peça nos taxistas. Assim que o carro passava pela escultura do Laçador, então situada na Avenida Farrapos, o artista fingia surpresa e perguntava ao motorista quem era o autor da obra. Como de costume, deparava com o desconhecimento do interlocutor.
— Sou eu! — informava Caringi.
A anedota é contada por familiares do escultor pelotense morto em 1981. Representa a desconexão que existe no imaginário das pessoas entre a obra máxima do Rio Grande do Sul, ícone de um povo e de uma cultura, e o responsável por criá-la. Esculpido em 1954 e erguido em Porto Alegre quatro anos depois, O Laçador ficou mais distante de sua história original conforme o passar dos anos.
Também incorporou uma lenda: a de que teria sido feito à imagem e semelhança do folclorista Paixão Côrtes (1927-2018), que teria servido de inspiração para a obra.
O Laçador foi criado para um concurso promovido pela Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul, que havia montado um pavilhão representando o Estado nas comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo, no Parque Ibirapuera. A intenção era decorar o espaço com uma obra que representasse o homem gaúcho. Jornais da época, como o Diário de Notícias, relatam que três artistas foram chamados para elaborar maquetes e submetê-las à avaliação do júri: Caringi, Fernando Corona (1895-1979) e Vasco Prado (1914-1998).
Nascido em Pelotas no ano de 1905, Caringi já era um escultor que havia se notabilizado por ter estudado na Academia de Belas Artes da Alemanha. Ao ser convidado para o concurso que queria lapidar a imagem ideal do gaúcho, já havia esculpido Sentinela Farroupilha (1935), um homem de lança, chapéu, vincha na testa, boleadeiras na cintura e bota garrão de potro, feito em Munique e posteriormente erguido em Pelotas, e a estátua equestre do general Bento Gonçalves, erguida em Porto Alegre em 1936.
Na competição de março de 1954, Caringi apresentou três maquetes: O Posteiro, O Bombeador e O Boleador, cada uma ocupando, respectivamente, o terceiro, o segundo e o primeiro lugar. Gaúcho Farrapo, de Vasco Prado, ficou em quarto. Peão da Estância, de Fernando Corona, em quinto. A comissão que coordenava o concurso tinha convocado quatro nomes para ajudar a opinar sobre os trabalhos: os historiadores Walter Spalding e Dante de Laytano e os tradicionalistas Ladário Canabarro e Paixão Côrtes, um jovem de 26 anos que trabalhava na Secretaria de Agricultura e em 1947 havia lançado as bases do movimento tradicionalista junto a amigos do Colégio Júlio de Castilhos.
Depois de escolherem O Boleador como a obra vencedora, eles solicitam que Caringi fizesse pequenas mudanças, sendo que a principal redefiniria seu nome: em vez de boleadeiras, que o homem tivesse um laço na mão direita. E que a maquete, então descalça, adotasse botas. Esses pedidos de alterações estão registrados em ata publicada pelo Diário de Notícias. Posteriormente, o artista também incluiria um bigode no rosto do gaúcho imponente que mira o horizonte.
O LP que mudou tudo
É desse momento em diante que a figura de Paixão Côrtes começa a se confundir com a concepção da obra. Em O Laçador — História de um Símbolo (1994), o folclorista conta que, após a sessão em que se decidiu pelo Boleador, Caringi, que precisava fazer as mudanças solicitadas e construir a estátua, convidou-o a posar para ele. "Caringi, em seguida, procurou-me em minha residência à Rua Sarmento Leite, 101. Nesse agradável contato, e diante das ponderações que fiz sobre a sua maquete que representaria O Laçador, Caringi me pediu que posasse para o traço do seu lápis. Como eu possuía uma espécie de museu: trajes típicos, laços, boleadeiras, esporas, guaiacas, tirador, cuias, bombas, etc, o escultor esteve, por várias vezes, em minha casa. Tomava detalhes das mãos, braços, gestualidades, postura e equilíbrio de tronco e pernas, peculiaridades e assentamento de cada peça ao corpo, etc. Ele, na grandiosidade de sua alma de artista, começava a criar e modelar seu O Laçador", escreve.
Mas as mudanças que Caringi faz da maquete do Boleador para a estátua do Laçador são mínimas, observa o historiador da arte e escultor José Francisco Alves, que escreveu sobre a história da obra de Caringi e o mito em torno de Paixão Côrtes no livro A Escultura Pública de Porto Alegre (2022).
— Em arte, tratamos a obra artística como fonte primária para a verdade. A estátua que foi erguida em Porto Alegre é a mesma que foi aprovada no concurso. É a mesma pose, tudo, com pequenas mudanças, como o lenço no meio do ombro e as botas garrão de potro, que não estavam na maquete original. E na original havia um chapéu pendurado atrás do pescoço, que Caringi tirou. Ele também colocou o bigode, que não havia na maquete aprovada em concurso. O Paixão, quando conhece O Laçador, já conhece ele pronto — diz Alves.
Filho de Paixão, Carlos Côrtes, 63 anos, diz que a opinião pública começou a ligar a imagem do folclorista à da estátua a partir da divulgação do disco Do Folk aos Novos Rumos (1977), cuja contracapa estampa uma foto dele ao lado do Laçador.
— Não, meu pai não é a estátua. Ele posou para que Caringi fizesse a concepção das vestimentas do Laçador. O pai nunca falou: "Eu sou O Laçador". Quando ele foi fazer Do Folk aos Novos Rumos, de 1977, ele foi buscar o produtor musical do álbum no aeroporto. Quando eles estavam voltando e passaram de carro pelo Laçador, o produtor comentou com meu pai: "Podíamos botar a foto desse Laçador na capa". Meu pai brincou com ele: "E por que tu não bota a foto do modelo?" E o produtor responde: "Mas tu conhece?". E o meu pai disse: "Sim, fui eu que posei para o Antonio Caringi". A partir daí, a imagem do pai começa a ficar ligada ao Laçador — conta.
Na citada contracapa do disco, na legenda da fotografia realizada pelo fotojornalista gaúcho Assis Hoffmann, consta a seguinte informação: "Quando o famoso escultor Caringi procurou perpetuar no bronze o gaúcho LAÇADOR, foi buscar Paixão Côrtes como figura. Na foto inédita, o modelo Paixão Côrtes e a estátua do Laçador". A mesma imagem foi usada na última página no livro que Côrtes escreveu sobre a história da escultura, em 1994. "A estátua e o inspirador. O Laçador e Paixão Côrtes", aponta.
Amizade duradoura
Ao dirigir o documentário Monumental! O Restauro de um Símbolo (2023), o cineasta Jaime Lerner conversou com a família Caringi, que vive em Pelotas, e tentou entender em que momento havia se iniciado o mito em torno de Paixão Côrtes e do Laçador. Em suas pesquisas, não encontrou nenhum material antes do disco de 1977 que mencionasse que o folclorista havia inspirado a estátua.
— Coloquei essa história no documentário para esclarecer. Quando o Caringi fez a maquete que ganhou o prêmio, ele ainda não conhecia o Paixão. Depois do concurso, ele e o Paixão ficaram muito amigos. O Paixão mostrou algumas vestimentas e o Caringi fez alguns desenhos. De repente, o Caringi pegou alguma referência que o Paixão mostrou. Mas a ideia que ficou no imaginário das pessoas é que o Paixão foi o modelo para a concepção da escultura. Isso não aconteceu — diz o cineasta.
Neta de Caringi e responsável pela gestão da obra monumental do avô, Antonella Caringi ressalta o carinho que a família tem pelo fato de o folclorista sempre ter divulgado e protegido a estátua.
— Quando o Caringi fez a maquete, já era a figura original do Laçador. A cara, os braços, o corpo. E o Paixão ainda não tinha posado para ele naquele momento. O Paixão posou com a indumentária, e o Caringi manteve a imagem da maquete, o corpo, e trocou a boleadeira pelo laço, ajustou algumas coisas. Mas o Paixão sempre foi a pessoa que mais salvaguardou a obra. Temos encantamento por tudo o que ele fez ao longo da vida, e carinho e gratidão por ter mencionado o Caringi tantas vezes — diz ela.
No documentário que conta a história do Laçador, Jaime Lerner reproduz uma conversa gravada durante um encontro entre Caringi e Paixão em 1978, na casa do escultor, em Pelotas. Ao ser entrevistado pelo folclorista, que perguntava como o artista procurava retratar seus monumentos, Caringi, então com 73 anos, dá a seguinte resposta em tom brincalhão:
— Tu vês que todos os meus gaúchos não são muito retrato, mas têm um ar de seu Paixão Côrtes. De todos os meus gaúchos, tu és o herói deles.