Todo gaúcho conhece O Laçador, mas poucos sabem da história por trás do monumento e muito menos que ele teve um forte concorrente: um indígena segurando uma lança e calçando botas de garrão de potro. Há 70 anos, as duas obras disputaram um concurso entre grandes escultores do Estado. O propósito era eleger a imagem que melhor representasse o homem dos pampas. O trabalho de Antonio Caringi (1905-1981) foi eleito e tornou-se um símbolo. Já o de Vasco Prado (1914-1998) permanece pouco conhecido.
Enquanto O Laçador foi erigido em 4,5 metros de bronze e repousa em uma das regiões mais movimentadas de Porto Alegre, em frente ao antigo terminal do Aeroporto Salgado Filho, a obra de Vasco Prado está recolhida no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs). Ambas foram feitas em 1954, a convite da Secretaria Estadual de Agricultura, com o mesmo objetivo: tornar-se a escultura que iria adornar o estande do Pavilhão Rio-Grandense montado no Parque Ibirapuera durante uma feira que celebrava o 4º Centenário de São Paulo.
Dorso nu, chiripá, boleadeira envolvendo a cintura e botas de dedos para fora representando a simplicidade do homem do campo, o gaúcho indígena de Vasco Prado foi batizado de Gaúcho Farrapo. Trata-se de uma maquete em gesso com 108cm de altura. Historiador da arte que pesquisou sobre o concurso que buscava a melhor representação do gaúcho, Diego Beck entende que Vasco, nascido em Uruguaiana e filiado ao Partido Comunista, foi intencionalmente provocativo ao sugerir uma figura que entrou para os livros de história por ter sido subjugada pelo homem branco europeu.
— Ele representou o gaúcho indígena, o gaúcho como primeiro habitante dessa região. Já um pouco aculturado, é verdade, porque ele tem o chiripá e o cinturão, mas também tem a lança. Sem dúvida, Vasco queria trazer à tona a raiz indígena que tentávamos esconder. Ele quis provocar. O Vasco era filiado ao Partido Comunista e não era muito bem quisto por causa disso. Não sei se ele imaginou que pudesse ganhar.
Caringi inscreveu três maquetes: Boleador, Bombeador e Posteiro (que ficaram, respectivamente, em primeiro, segundo e terceiro lugar), sendo que a primeira virou O Laçador após modificações solicitadas pelo júri. Naquela época, o pelotense que estudara Belas Artes na Alemanha já era visto como o maior estatuário do Estado, tendo no currículo o Monumento Equestre ao General Bento Gonçalves e o Monumento ao Expedicionário, ambos em Porto Alegre.
Vasco Prado e seu gaúcho indígena ficaram em quarto lugar. Consta nos jornais da época que ele retirou o trabalho do concurso quando soube a opinião do júri. Não se sabe o motivo. O terceiro convidado era Fernando Corona (1895-1979), que batizou sua maquete de Peão da Estância, classificada em último lugar. A obra, contudo, é dada como perdida.
Um dos jurados e também um dos idealizadores do movimento tradicionalista, Paixão Côrtes considerou que Gaúcho Farrapo e Peão da Estância deveriam ser eliminados porque representavam "a formação do gaúcho, porquanto o que se procura é a sintetização do gaúcho da atualidade", conforme o jornal Diário de Notícias registrou à época.
Gaúcho Farrapo foi adquirido pelo Margs em 1955, tendo sido uma das primeiras obras a compor o acervo do museu, surgido um ano antes. No catálogo, foi rebatizado apenas de Gaúcho. Fundador do museu, Ado Malagoli deu a seguinte declaração: "O primeiro artista adquirido, aliás em situação polêmica, tinha perdido o concurso para o Laçador, de Caringi, foi Vasco Prado, que considero um artista de âmbito nacional", segundo consta no livro Memória do Museu (2004), organizado por Paulo Gomes e Vera Grecco.
Em 2001, três anos após a morte de Vasco, o Margs fez uma réplica em bronze de Gaúcho para preservar o original em gesso de constantes desgastes provocados pelo excessivo manuseio.
O gaúcho em questão
Antonio Caringi e Vasco Prado apresentam tipos de gaúcho radicalmente opostos. Enquanto um representa o descendente do europeu colonizador, outro resgata a figura mais primitiva, a que foi colonizada. Ao estudar as duas obras e as influências de cada artista, Diego Beck chegou à conclusão de que ambas abordam com veracidade a formação do Rio Grande do Sul.
— Quando colocamos O Laçador de um lado e Gaúcho, do Vasco, de outro, vemos que são coisas muito diferentes. Porém, não podemos negar que o gaúcho tem um pouco do Laçador, desse homem lusitano, mas também tem do indígena. Só que as pessoas se esquecem de tudo isso — diz.
Anos antes do concurso que escolheu O Laçador, já havia um apelo por uma imagem que representasse o gaúcho ideal. Em 1935, Porto Alegre recebe de presente da comunidade uruguaia o monumento Gaúcho Oriental, instalado no Parque da Redenção. A imagem fundida em bronze por Federico Escalada mostra um peão em pose apoiado em um tronco como se descansasse enquanto contempla o horizonte. Contudo, o movimento tradicionalista que ganhava força naquela época queria algo mais emblemático, conforme conta o historiador da arte José Francisco Alves no livro A Escultura Pública de Porto Alegre (2004).
— Gaúcho Oriental é o gaúcho com mais espírito de gaúcho, bonachão, pacholento. Já O Laçador foi construído para ser um símbolo, para ser reproduzido tipo o Cristo Redentor, para ser um souvenir. O gaúcho de Vasco Prado é o que trabalha na estância, um gaúcho descendente de português e misturado com índio. É um indígena filho de português. Um mestiço, do meu ponto de vista — diz Alves.
Casada por 28 anos com Vasco Prado, a artista plástica Zoravia Bettiol não tem memória de ouvir o marido discorrer sobre o concurso que havia perdido para Caringi. Acredita que se a disputa pela representação de um gaúcho acontecesse nos dias de hoje, a imagem do indígena vestindo botas e chiripá talvez tivesse maior visibilidade.
— Hoje, essa questão das origens negra e indígena é palpitante. O branco europeu é o mais valorizado. Depois, e muitíssimo menos, vem o negro. Enquanto o indígena é rechaçado de todas as formas.
Para um dos maiores estudiosos da cultura gaúcha, Tau Golin, autor de A Ideologia do Gauchismo (1983), é impossível construir uma única escultura que possa representar todo o povo rio-grandense, essencialmente multicultural e multiétnico. Contudo, o concurso de 1954 reafirmou o apagamento da participação dos indígenas na formação do Estado.
— Até hoje existe uma tensão muito grande entre o mundo rural de origem imigrante e os territórios indígenas. Esses imigrantes, assim como os oligarcas do passado, não reconhecem os indígenas como seres de direito, mesmo que os indígenas tenham sido os primeiros estancieiros do Rio Grande do Sul. Nesse concurso que elegeu O Laçador, optou-se por uma figura com aceitação da visão dominante, e não o gaúcho originário.
Não podemos negar que o gaúcho tem um pouco do "Laçador", desse homem lusitano, mas também tem do indígena. Só que as pessoas se esquecem de tudo isso
DIEGO BECK
Historiador da arte
Em debate no museu
À frente do Margs desde 2019, Francisco Dalcol acostumou-se às reações de quem entra no museu e, frente à escultura em gesso de um indígena batizado de Gaúcho, espanta-se ao descobrir que a obra concorreu com O Laçador e foi esculpida por outro grande artista do Estado.
Em 2022, quando foram comemorados os 250 anos de Porto Alegre, o Margs fez uma exposição com peças capazes de provocar reflexões sobre a cidade. Entre elas, a maquete que perdeu para o símbolo máximo da Capital.
— Claro que não queríamos criar rivalidades, não é nada disso. A intenção era pensar a história de um monumento que é um marco urbano de Porto Alegre e como teria sido se o gaúcho indígena de Vasco Prado tivesse vencido. A história, muitas vezes, é a história dos vencedores, daqueles que se impõem de maneira hegemônica. Fizemos um convite para refletir — diz o diretor-curador.
Entre os mais respeitados historiadores da arte do Estado, José Francisco Alves não enxerga qualquer resquício ideológico na escolha do comunista Vasco Prado por esculpir um indígena no concurso pela melhor imagem do gaúcho, apenas uma opção por um determinado período da história do Rio Grande do Sul. Também descarta a ideia de que a obra é menos conhecida porque foi desvalorizada. Apenas perdeu e nunca se tornou monumento.
— Não há como competir com O Laçador, um monumento público que está à vista de todo mundo. Mas todos reconhecem que a obra do Vasco é uma grande obra. Eu, particularmente, acho espetacular.