Por Alexandre Santos
Crítico e historiador da arte, professor do Instituto de Artes da UFRGS
Debruçada sobre arquivos fotográficos há mais de 20 anos, Helena Martins-Costa tem nas imagens vernáculas a matéria-prima do seu trabalho artístico. Entende-se por vernáculas as imagens fotográficas amadoras e desprovidas de rigor técnico, como aquelas coladas com cantoneiras nos antigos álbuns de família. A gaúcha radicada em São Paulo coleciona sobretudo retratos, provenientes de diversos lugares e adquiridos a partir de pesquisa extensa em mercados de pulgas ou feiras. Tais imagens, afastadas de seu contexto cultural de origem, lhe interessam justamente por se encontrarem, como ela mesma declara, num “limbo existencial”. Distantes das circunstâncias de sua captação, elas deixam de ser documentos para se tornarem monumentos e apontarem para o seu mais puro estatuto de imagens técnicas.
A série Desvio/Provas (2014-2022), que a artista apresenta no Atelier V744, é oriunda de uma pesquisa patrocinada pela Bolsa de Fotografia ZUM (leia informações sobre visitação ao final deste texto). Trata-se de 17 imagens cujo elemento comum é a distorção da perspectiva. Os corpos inclinados dos fotografados provocam uma crise na ordem visual que buscamos na imagem fotográfica e mesmo em nossa relação espacial com o mundo. Ao alicerçar-se nos “erros fotográficos”, o desafio da artista aposta no estranhamento que a fruição dessas imagens pode promover. Ao longo da história da fotografia o repertório dos erros fotográficos é extenso, mas os enquadramentos ruins estão entre os mais frequentes.
A máquina fotográfica, herdeira da perspectiva renascentista, foi projetada para reproduzir mecânica e fidedignamente a “realidade” em imagens tributárias da pintura e sob o primado da ortogonalidade. Apesar das trucagens ilusionistas dessa premissa, ao longo do século 20 os modos de operação e obtenção da imagem fotográfica engendraram brechas artísticas, para a adulteração desse rigor protocolar em favor da experimentação de outros pontos de vista. A título de exemplo vale lembrar que entre as vanguardas históricas, a Nova Visão, através de László Moholy-Nagy, Umbo e Rodchenko, entre outros artistas, foi pioneira justamente na afirmação da potência dos ângulos inusitados da tomada fotográfica.
Com a atual disseminação de fake news, maquiavelicamente utilizadas na produção e manipulação das subjetividades, as apropriações fotográficas de Helena Martins-Costa tornam-se mais relevantes ao refletirem sobre a cultura fotográfica e os seus desvios de rota. Inclusive no que concerne ao estatuto ficcional da imagem técnica, sempre atravessado por diferentes formas de deslocamento do real. Em primeiro lugar, pelo próprio modus operandi da fotografia que, como um signo próximo do ready-made duchampiano, sempre desloca o referente e o transforma em imagem. O trabalho da artista, por sua vez, engendra também um deslocamento de segunda ordem, estabelecido pela aproximação e mistura de imagens provenientes de contextos espaço-temporais diversos. E ainda por promover um deslocamento através da “refotografia” das imagens da série, recurso responsável pela instauração de novos recortes e possibilidades narrativas.
Se o recorte é uma especificidade da imagem fotográfica, na série em questão ele ganha outros contornos simbólicos com a ampliação das imagens, originalmente programadas para serem vistas em pequeno formato. Seja porque percebemos a falta de nitidez dos rostos ou ainda pela ação do tempo sobre as fotografias analógicas, aliás um elemento caro à artista. A ampliação torna mais visível a cor desgastada e a presença de manchas, fungos ou arranhões, incrustados no corpo material da imagem sobre papel. A escala do conjunto, próxima da humana, gera uma estranha empatia com os fotografados e seus olhares sérios, denunciando a sua fragilidade humana em roupas domingueiras ou trajes de banho, tão parecidos com os nossos familiares já desaparecidos.
Por fim, a ampliação, combinada à justaposição das imagens, sugere uma percepção de movimento e ritmo do conjunto que se amplia no espaço da galeria. Importante destacar que a origem da série Desvio/Provas provém de outro trabalho da artista, casualmente também em exposição em Porto Alegre. Trata-se da videoinstalação Por um Fio (2012), que faz parte da mostra Em Caso de Emergência, em cartaz no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS). Se naquele trabalho inaugural da artista no campo do vídeo temos um caminho no qual a imagem em movimento é investigada em sua potencialidade de se tornar imagem fixa, no caso de Desvio/Provas a proposta se inverte, pois são as imagens paradas que pretendem gerar movimento.
Desvio/Provas
De Helena Martins-Costa. Abertura às 17h deste sábado (5/11) e visitação até 9 de fevereiro de 2023, de quartas às sextas-feiras, das 14h às 17h. No Atelier V744 (Rua Visconde do Rio Branco, 744), espaço da capital gaúcha idealizado pela artista Vilma Sonaglio que tem como proposta promover exposições, debates e reflexões sobre a arte contemporânea. Contato no Instagram @v744atelier. Entrada franca.