Por Flavio Santanna Xavier
Procurador federal e escritor
Neste ano se completarão 10 anos do falecimento da Magliani. Por coincidência, a Fundação Iberê Camargo inaugurou uma panorâmica exposição da sua trajetória artística. Não há notícia de outra homenagem significativa entre nós.
Pintora, escultora, gravadora, ilustradora, diagramadora, atriz, cenógrafa, figurinista, professora (proibida pela Secretaria Estadual da Educação de opinar sobre a escola infantil onde lecionava), artesã, poetisa, Maria Lídia dos Santos Magliani foi uma pintora (como se definia) à frente do seu tempo, que ergueu sua obra com admirável coerência e sem qualquer tipo de concessão. “Só obedeço à minha mão”, ela dizia.
Começou em Pelotas, esculpindo bailarinas com o barro e desenhando a carvão, à míngua de lápis de cor. Decidiu ser pintora após folhear uma revista com Van Gogh na capa. O pai, seu primeiro incentivador, não a reprimiu nem quando a vizinhança se escandalizava com seus nus femininos na cerca da casa, já na capital. A fase de “muralista de cerca”, debochava.
Uma das primeiras negras formadas no Instituto de Artes da UFRGS, aluna rebelde e talentosa, se recusava a copiar garrafas de gesso. “Eu me escondia atrás da cortina usada pelos modelos vivos e fazia lá meu atelier. Que ninguém entrasse para bisbilhotar. Nem meu professor, o Ado Malagoli.” Malagoli reconheceu seu talento de genuíno lirismo e incentivou a primeira exposição individual, em 1966.
Destacou-se no teatro como atriz, figurinista e cenógrafa. O diretor Ivo Bender relata a notável presença cênica de Magliani na montagem de Antígona como atriz (no papel de Tirésias), mesmo não sendo a protagonista, tamanho o impacto de sua presença, apesar do corpo frágil.
Ilustradora por cerca de seis anos na Folha da Manhã, com passagens mais rápidas por Zero Hora e Diário de Notícias, ilustrou inúmeros livros, folhetins e periódicos. Também na Folha de S. Paulo e no mítico Versus. É difícil encontrar algum periódico ou edição alternativos e de resistência gaúchos daquela época sem a sua contribuição (graciosa quase sempre), o que dá bem o tom de sua consciência social e política.
Magliani teve a coragem de ser fiel a si mesma e procurar a verdade no que chamava “seu centro frágil”, sem qualquer tipo de concessão estética ou comercial. Seu principal instrumento foi a figura humana, geralmente feminina e deformada. Livio Abramo foi certeiro sobre sua integridade artística: “Uma arte vigorosa, espontânea, agressiva e sem concessões – uma arte que reduz a beleza em seu sentido clássico e aspira a retratar as verdades ocultas do ser humano, sejam elas compreensíveis ou detestáveis”.
Postura rara porque se recusou a qualquer redução: à sua cor, condição feminina ou social. Interessava o ser humano como matéria-prima: sua única obsessão. Quando o mercado exigia que, a exemplo de seus colegas negros do país, seguisse o primitivismo ou que descambasse para a atitude panfletária ou da moda, ergueu sua obra em defesa de um humanismo, com alto sentido moral e força suficiente para denunciar a solidão, o desamparo e a violência da condição humana.
Magliani teve a coragem de ser fiel a si mesma e procurar a verdade no que chamava “seu centro frágil”, sem qualquer tipo de concessão estética ou comercial.
Tamanha coerência exigiu-lhe preço alto. Para se manter – também a família que dela dependia, mesmo não tendo filhos –, exerceu vários labores marginais à pintura e migrou ao centro do país, como quase todos seus amigos, em busca de um reconhecimento que ao final nunca propiciou estabilidade econômica, apesar da ajuda dos mais próximos e solidários nas dificuldades.
Magliani morreu no dia do fim do mundo no calendário Maia. Na véspera, no que talvez fora seu último e-mail, confessou não achar tão ruim que o mundo se acabasse: “Estou cansada demais para continuar remando nesta nave de contradições”. Cantarolou sem parar a música E o Mundo Não se Acabou, de Assis Valente, interpretada por Adriana Calcanhoto, cuja letra assim finda: “Anunciaram e garantiram/ que o mundo ia se acabar”.
Dizem que, com a exposição na Fundação Iberê, seus quadros dobraram de preço, num mercado onde artista morto vale mais que vivo. A nave das contradições, ela que por último residia numa pensão paupérrima da Lapa, no Rio de Janeiro, cujo quarto se resumia a um catre e pia. Quando pisei no prédio alvo projetado por Álvaro Siza, recordei Lima Barreto: “Quem quiser lutar por aqui e tiver de fato um ideal qualquer superior, há de por força cair. Não encontre quem o apoie. Pobre, há de cair pela sua própria pobreza; rico, há de cair pelo desânimo e pelo desdém por esta Bruzundanga”.
Viva Magliani e sua integridade!
A exposição
Com curadoria de Denise Mattar e Gustavo Possamai, Magliani está em cartaz até 31 de julho na Fundação Iberê Camargo (Av. Padre Cacique, 2.000), em Porto Alegre. São 200 obras produzidas por Maria Lídia Magliani (1946-2021) ao longo de 50 anos. Os ingressos custam de R$ 10 a R$ 30 (às quintas-feiras a entrada é gratuita).