Uma escultura da exposição BIO-I, do artista visual David Ceccon, foi removida da Pinacoteca Aldo Locatelli, localizada no Paço Municipal, sede da prefeitura de Porto Alegre, sob a alegação de que seria inadequada ao espaço. Com uma forma que remete a um pênis e a uma vagina, a obra foi removida por orientação da Coordenação de Artes Visuais da Secretaria de Cultura do município antes da inauguração da mostra, na última terça-feira (23).
– Quando apresentei o projeto da exposição, fui comunicado pela coordenação de que essas peças não seriam bem aceitas nesse espaço, por ser da prefeitura, e não só de artes visuais. Me relataram que já tiveram outros problemas com outros artistas, seja por nudez ou questões políticas. Me convidaram a não inserir essa parte da mostra. Decidi colocá-la mesmo assim, mesmo que tivesse que tirá-la depois, para mostrar que faz parte do meu projeto – diz David Ceccon.
Inicialmente, quatro obras seriam removidas, mas após conversa entre artista e organização, apenas uma escultura foi retirada. Adriana Boff, coordenadora de Artes Visuais, conta que ficou surpresa ao conferir a montagem da exposição:
– A combinação era que essa série de obras não seria adequada para esse espaço. Houve uma negligência do artista ao aceitar algumas peculiaridades desse espaço, que é do Executivo da cidade, que recebe crianças, e não é propriamente de arte. Era uma questão de sutileza.
De acordo com Ceccon, a decisão de não retirar a obra apesar do que havia sido previamente combinado tem relação com a sua poética:
– Esse é meu trabalho. Não posso mascará-lo e fazer algo que um espaço me solicita a encobrir. Prefiro colocar meu trabalho à mostra mesmo que seja retirado depois. Assim, pode-se discutir por que esse trabalho não vai ser visto ou por que incomoda muita gente. Melhor do que fingir que esse pedido nunca existiu. É uma coisa relevante para se discutir a arte, o que é permitido ou não num espaço de arte. O que é sensível ou social. Queria abrir um pouco esse debate.
No lugar onde estaria localizada a escultura, restou um prego na parede. Na inauguração, houve um momento em que um visitante colou na parede um pequeno papel com a palavra "censurado".
– É algo que vem acontecendo desde 2017 com a Queermuseu e em outros lugares. Nós não temos acesso a muitas obras porque já acontece uma censura prévia com o júri ou curadores. Existe todo um sistema em diferentes níveis. Toda uma cadeia de censura se forma. São coisas que estão fragilizando os espaços de arte – afirma Ceccon.
Adriana ressalta que não há retaliação por parte da prefeitura:
– Estamos atendendo a todos os assuntos possíveis: política, violência, do corpo, sexualidade, entre outros. Só precisamos ter o cuidado sobre como vamos transmitir isso. Não é um espaço de artes visuais. É um espaço de passagem da prefeitura.
A coordenadora destaca também que a prefeitura cede o espaço para o artista mostrar o trabalho, mas procura buscar um alinhamento do que vai ser exposto por meio da conversa.
SOBRE A EXPOSIÇÃO "BIO-I"
Vencedora da segunda edição do Prêmio Aliança Francesa de Arte Contemporânea, a exposição individual de Ceccon está sendo apresentada na Sala da Fonte na Pinacoteca Aldo Locatelli. A mostra reúne os trabalhos que ele desenvolveu durante sua residência no Centre Intermondes (La Rochelle, França) em 2018.
Morador de Porto Alegre, aos 27 anos, Ceccon trabalha com gravura, pintura, cerâmica, objeto, fotografia e até redes sociais para a sua experimentação artística. Conforme a descrição de BIO-I, "o artista explora as temáticas de gênero, identidades, autorrepresentação e ficção no espaço digital em esculturas e vídeos".
– Meu trabalho é uma série de esculturas que partem de uma pesquisa a partir dos sistemas reprodutores feminino e masculino, indicando que os dois têm a mesma forma, só variam o tamanho e a função. Comecei a fazer essa mistura de órgãos a partir da argila, criando formas sexuais em uma mistura, mas com um viés biológico – indica Ceccon. – Misturar isso para questionar essas funções do masculino ou feminino, o que é super arbitrário de um ser humano.
Segundo o artista, sua obra lida com a ambiguidade do masculino e do feminino, propondo uma desconstrução dessa ideia que seria uma construção social.
– Não é a relação sexual em si, mas as questões filosóficas que envolvem o gênero e o corpo. As ambiguidades que a gente constrói pela leitura social e histórica.