Instantes depois da chegada do repórter e do fotógrafo ao apartamento de Higienópolis, na região central de São Paulo, Jô Soares se queixa de uma dor lombar.
— A única coisa que me aporrinha é a ciática — conta.
O incômodo, porém, não o faz deixar o trabalho de lado. Desde que começou a atuar, nos anos 1950, uma das maiores personalidades do Brasil tem transitado intensamente entre teatro, televisão, cinema e literatura. "Eclético total, o que mais gosta é tudo", escreveu Millôr Fernandes (1923-2012) sobre o amigo.
Agora, aos 81 anos, Jô reduziu um pouco o ritmo e se concentrou nos palcos, mas seu vigor intelectual e físico ainda impressiona. Em 2006, ele abandonou a bancada do programa noturno que exibiu na Globo durante 16 anos.
Jô estreia O Livro ao Vivo na quinta-feira (4), no Teatro Faap, na capital paulista. Retoma um formato de espetáculo, um show de humor, que não fazia desde Na Mira do Gordo, cuja temporada se encerrou em Portugal em 2005.
Além disso, Jô começa a dirigir duas peças, para as quais também se encarrega das traduções. Por ora, ele prefere não dizer quais são.
— Só sinto essa dor lombar quando ando. Como farei o espetáculo sentado, não tem problema — diz.
O Livro ao Vivo se baseia nos episódios narrados nos dois volumes de O Livro de Jô - Uma Autobiografia Desautorizada (Companhia das Letras), escritos em co-autoria com o jornalista Matinas Suzuki Jr.
A ideia nasceu há quatro meses, quando o humorista lançou a segunda parte da sua biografia. Em vez de uma tradicional sessão de autógrafos, ele fez uma apresentação informal para o público, lembrando algumas histórias do livro. As reações foram tão positivas que Jô se deu conta que dali poderia nascer um show.
Nos dias seguintes, ele se recordou de espetáculos em que artistas rememoram passagens da sua vida. Um deles foi o ator sul-africano radicado na Inglaterra Basil Rathbone (1892-1967), visto por Jô em 1964 no teatro Record, em São Paulo. Outra lembrança foi uma gravação de uma performance nessa mesma seara da atriz americana Bette Davis (1908-1989).
Como nas capas dos livros, Jô terá Matinas ao seu lado no palco. O jornalista é quem irá guiar o show, lançando os temas a serem explorados pelo ator. Assunto não falta. Na quarta, dia em que ocorreu esta entrevista, Jô contou que uma leitura recente de O Livro ao Vivo havia durado duas horas. Ele, Matinas e o assistente de direção, Maurício Guilherme, estavam discutindo quais trechos cortar para chegar a uma hora e meia.
Jô levará ao teatro reminiscências de nomes esquecidos, como Túlio de Lemos, um paranaense de 2,05 m que fez sucesso como cantor de ópera na juventude e depois trabalhou como ator e produtor de TV. Por outro lado, virão recordações de figuras marcantes da cultura brasileira, como Bibi Ferreira.
A notável memória de Jô contribuiu muito para a construção do livro e, por tabela, do espetáculo. Mas também ajudou o fato de que ele esteve diversas vezes no centro ou na vizinhança dos grandes acontecimentos culturais, sociais e políticos do país, uma posição privilegiada que enriquece os relatos.
— Quando tinha 8 anos (em outubro de 1945), eu morava perto do palácio da Guanabara, no Rio. No muro da minha casa, vi passar o carro com Getúlio Vargas sendo deposto — conta.
— Em 1964, assisti à tomada do Forte de Copacabana, em frente à TV Rio, onde eu estava. O coronel César Montagna mandou os soldados botarem as armas no chão — diz Jô sobre um dos capítulos do golpe militar, que completa agora 55 anos.
Num tom cômico e indignado, ele arremata: "Peguei dois momentos de golpe no Brasil. Chega!".