Um dia depois do solstício de inverno, um rigoroso frio porto-alegrense castigou a noite da Capital, mas nem isso impediu que dezenas de pessoas se aglomerassem no Viaduto Otávio Rocha para acompanhar duas performances artísticas, que ocorreram entre as 19h e as 21h desta sexta-feira (22).
Em frente ao restaurante Justo, o artista mineiro Matheus Rocha Pitta apresentou a performance Sopa de Pedra. Paralelamente, na Rua Duque de Caxias, o espetáculo multicênico (De)Colagem ocorria com participações de Adriana Deffenti, Bruno Polidoro, Bruno Gularte Barreto, Cia. Atimonautas, Coletivo Moebius e Jackson Brum.
A Sopa de Pedra começou às 19h como uma performance interativa com o público, que se inspirou em certa história europeia, trazida para o Brasil pelos portugueses. Com título homônimo ao trabalho de Matheus, a narrativa tem várias versões, mas todas consistem em um monge (ou soldado), que vive em um período pós-guerra e chega em uma cidade morrendo de fome. O personagem pede comida para os habitantes do local, mas ninguém oferece nada. Então, ele decide colocar água em uma panela, jogar pedras e cozinhar a estranha refeição em praça pública. Durante esse processo, passantes curiosos perguntam o que está acontecendo. Ao que o monge/soldado responde dizendo que está fazendo uma sopa, que está muito boa, mas ficaria ainda melhor se tivesse algum alimento. Aos poucos, os habitantes da cidade vão colocando batatas, cenouras, cebolas, alhos na sopa. Ao final, o personagem tira as pedras e todos sorvem do alimento juntos.
Como um sopão, Matheus e sua equipe distribuíram aos passantes do Viaduto Otávio Rocha um prato com um caldo quente, duas esculturas de legumes em pedra de sabão e dois legumes reais a escolha do freguês, acompanhadas de uma fatia de pão. A refeição foi uma parceria do artista com o restaurante Justo - Matheus forneceu os alimentos e o restaurante os preparou. A atração reuniu moradores de rua e frequentadores do local.
— A pedra entra como signo da fome, como o alimento daquilo que não é comida, mas que junta as pessoas. O mais bonito é isso, é uma escultura que só acontece nesse momento que tem a pedra junto com a comida. Ela precisa dessa interatividade para existir. Precisa ser partilhada para acontecer — explica o artista.
O trabalho já tinha ocorrido no Rio, atrás da Faculdade de História e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em frente ao Real Gabinete Português de Leitura. Bernardo José de Souza, curador da Fundação Iberê Camargo e responsável por trazer o trabalho de Matheus para Porto Alegre, explica que a ideia foi justamente buscar um lugar público, sair da instituição:
— No Rio, alguns moradores de rua foram, mas majoritariamente eram pessoas interessadas na performance. Aqui eu ainda estou observando, mas é um público bem mais misturado. Muita gente passa, vê, senta, se serve. Tô super feliz, acho importante que a arte pense além de teoricamente suas questões, que ela também possa ser propositiva em termos de convivência.
Morador de rua, Lucio Ferreira conta que foi até o local pensando se tratar das mesmas pessoas que frequentemente oferecem sopa no viaduto. Ele se surpreendeu ao ver que, além da refeição, também havia a questão dos legumes em pedra de sabão:
— Tava passando por aqui, vi a sopa e decidi provar. Tem outras pessoas que de vez em quando oferecem sopa embaixo do viaduto, aí eu vim achando que era isso. Mas é a primeira vez que oferecem com uma pedra junto, é diferente, mas está bem gostoso.
Do outro lado, Caio
O espetáculo multicênico (De)Colagem ocorreu em meio à rua Duque de Caxias, paralelo ao sopão. Carros, ônibus e passantes se misturavam às apresentações de música, dança, teatro de bonecos, projeções audiovisuais nos prédios ao redor e desenhos feitos na hora. A proposta da performance, que não tem direção-geral, foi criada a partir da peça de Caio Fernando Abreu e Luís Artur Nunes, homônima ao espetáculo. O texto foi garimpado no Espaço Sônia Duro do Teatro de Arena, que guarda um acervo de trabalhos que marcaram a resistência à ditadura.
No início da apresentação, Adriana Deffenti interpretou um texto ao som da guitarra de Ricardo Pavão. Logo depois, o coletivo Moebius deu partida em sua performance, aumentando as dimensões do "palco", que ora estava no lado direito da rua, ora no esquerdo, ora no meio dela. Projeções audiovisuais em dois prédios da Duque de Caxias, produzidas por Bruno Polidoro e Bruno Gularte Barreto, redirecionaram a atenção do público. Logo depois, uma interpretação do texto de Caio e Nunes saiu dos auto-falantes espalhados pelo local, enquanto o teatro de bonecos da Cia. Atimonautas se apresentava. As diferentes linguagens voltaram a se revezar ou se cruzar, dando ainda mais potência ao texto original da peça.
(De)Colagem estava planejado para iniciar suas sessões nesta quinta-feira (21), mas devido a intempéries, o espetáculo foi adiado para o dia seguinte, sexta-feira (22), quando ocorreram duas apresentações. A primeira, às 19h, e a segunda, às 20h30. Há mais uma sessão que ocorre neste sábado (23), às 20h, no mesmo local. O arquiteto Thiago Balen conta que ficou sabendo da atração por Instagram e decidiu conferir:
— Nunca tinha visto algo parecido aqui no viaduto. Eu acho super bom, é acessível, aproveita um lugar muito bonito da cidade. Acho ótimo também porque a gente ta precisando sair da engrenagem e o espetáculo oferece isso.
Outros espectadores da apresentação, Gabriela Zambrano e Pedro Jost, mãe e filho, souberam do (De)Colagem pelo evento no Facebook e ficaram curiosos:
— Eu vi pelo facebook que ia acontecer e comentei com meu filho. Hoje ele me cobrou pedindo pra ir no "teatro". Eu to achando o espetáculo bem legal, é bem importante ocupar o espaço público dessa forma — relata Gabriela.
Com apenas 9 anos, o pequenino Pedro também se mostrou bastante empolgado com (De)Colagem, principalmente com as projeções nos prédios e os desenhos feitos pelo artista visual Jackson Brum. Incorporando o clima multicênico, Pedro estava com uma flauta no bolso da jaqueta e decidiu tocá-la por alguns segundos. Provavelmente a reação mais genuína diante de tudo que estava acontecendo ao redor.
Confira mais fotos das performances abaixo: