O transcorrer do fechamento da exposição Queermuseu pelo Santander Cultural de Porto Alegre deixou claro que o que está em causa na polêmica que ganhou repercussão internacional é algo maior, por extrapolar o campo da arte. Ao atender a vontade de um segmento da sociedade que em grande parte reagiu no calor dos fatos, respondendo de maneira instintiva e pouco esclarecida a um chamamento típico dos tempos barulhentos de redes sociais, a decisão controversa da instituição feriu perigosamente as garantias da liberdade de expressão, um dos princípios e conquistas fundamentais de qualquer sociedade que assenta suas bases na democracia. E ao decidir pelo encerramento antecipado, não só potencializou uma polêmica-pronta diante do ruidoso momento em que as tradicionais divisões ideológicas do país encontram-se acirradas, como também abriu um precedente para a validação da censura moral no campo da cultura.
Desde suas origens até as consequências, o episódio oferece uma espécie de espelhamento do conflito que atualmente permeia a sociedade brasileira, conflito este que tem como epicentro a crise dos sistemas representativo e político no país. Basta ver os argumentos dos que se somaram à turba dos contrários à exposição para perceber que não se trata exatamente de uma discussão sobre arte, mas de uma campanha dos que buscam fazer prevalecer uma visão de mundo intransigente às diferenças que pontuam a coletividade. E que, portanto, não estão interessados em arte, mas em impor padrões de valores morais, o que não é outra coisa senão autoritarismo.
Os que aderiram à campanha de boicote ao banco na internet acabam sendo a expressão do resultado obtido por uma antiga tática oportunista que se aproveita da arte com o interesse de identificar nela um inimigo comum e, com isso, arregimentar uma massa insuflada pela ode ao desprezo, à intolerância e ao ódio. Não foi por acaso que, já no estopim da repercussão, logo surgiram referências à perseguição empreendida pelo nazismo à arte moderna, a qual Hitler chamava de "arte degenerada". Mas é justamente porque essas forças obscurantistas reeditaram o ataque à arte, às sensibilidades e às inteligências como estratégia de combate em sua guerra ideológica que a discussão retorna ao campo da arte, sem que dele tenha saído por completo em algum momento.
Da aristocracia à igreja e da nobreza à burguesia, a arte sempre esteve próxima ao poder, e a história está repleta de episódios em que instâncias e grupos instrumentalizaram-na por diferentes motivos e intenções. Na história dos estilos artísticos, pelo menos três são bastante conhecidos: o barroco como veículo de comunicação do absolutismo e da contrarreforma; o neoclassicismo como meio de propaganda da revolução francesa e das ambições expansionistas de Napoleão; e o realismo socialista como política de estado da Rússia revolucionária e depois stalinista.
Nesses contextos, pode-se dizer que havia uma correspondência quase total entre o conteúdo das imagens e a leitura de seus significados. Interpretar uma obra era estar em concordância com o seu sentido "verdadeiro", porque mimético e naturalista. Com a arte moderna, esse determinismo não mais se sustentou rigidamente. O abstracionismo, por exemplo, desestabilizou radicalmente os códigos visuais que por séculos moldaram significados segundo representações figurativas ancoradas nos referentes do mundo externo. A partir daí, tanto artista como espectador viram-se diante de uma realidade que passava a existir somente dentro do universo da própria obra, convocando novos modos de ver e compreender, muitas vezes situados no interior da subjetividade de cada um.
Há outras diversas passagens também significativas nas mudanças de compreensão do que seria arte. A trajetória das vanguardas artísticas nos séculos 19 e 20, por exemplo, é a história de um constante derrubar de convenções seguido pela formulação de novas definições que afirmavam as diferenças e a existência das novas formas de arte. Com as vertentes conceituais da arte contemporânea, deu-se um passo ainda além, que fez com que a obra pudesse acontecer apenas enquanto ideia e pensamento, dispensando a existência de qualquer objeto material em favor da linguagem.
Desde então, o efeito é que grande parte dos artistas operam na esfera do simbólico, explorando a metáfora, a ironia, a alegoria e jogos de linguagem com o interesse de deslocar os códigos perceptivos que estabelecem o que é realidade ou ficção, verdade ou invenção. Mesmo quando trata de questões do mundo concreto, trabalhando com temas sociais e culturais que estão fora do que seria específico ao campo artístico, a arte contemporânea recoloca as coisas de outro modo, como um convite a pensar e refletir. Ao opor um mundo comum ao outro, o artista cria novas relações e situações. A importância dessas reconfigurações está em projetar novos modos de sentir e subjetivar. Assim, o artista é sempre aquele que intervém numa determinada forma pré-estabelecida, consensual e hegemônica da sensibilidade coletiva, reformulando a experiência comum.
Muitos já acusaram que a arte contemporânea é de difícil acesso, exigente com o espectador e cifrada em seus significados. Contudo, não existem condições inatas que garantam o interesse pela arte. Ninguém nasce conhecendo e gostando, é necessário algum tipo de disposição e envolvimento. O olhar e a sensibilidade precisam ser submetidos a um constante treinamento, formando-se um pouco a cada dia, no contato com a arte e com a vida. Quanto mais vemos e conhecemos, mais aprendemos e sabemos. Sentir, imaginar, pensar e subjetivar são operações que nos humanizam enquanto humanos.
São diversos os teóricos e pensadores que argumentam que a experiência estética está implicada em uma política própria à arte: a saber, um jogo de significação que fica em suspenso entre a intenção do artista e a compreensão do espectador. Ou seja, por mais que artistas intencionem passar uma mensagem, não se pode antecipar ou determinar o exato efeito de uma obra artística no público, pois seus significados são abertos, e as interpretações também. Entender essa política da arte é reconhecer que o seu potencial de renovação das sensibilidades e dos imaginários se dá a partir das experiências de cada um, do artista ao espectador.
Portanto, não é concebível prever ações desencadeadas automaticamente pelo eventual conteúdo que as obras carreguem ou transmitam. Não há como determinar qualquer relação unívoca entre uma imagem ou forma artística e sua compreensão pelo indivíduo. Do contrário, a violência simbólica dos diversos meios visuais a que estamos submetidos sempre se reverteria em todos nós como comportamentos programados pelas imagens que consumimos.
Ao afirmar que as obras de Adriana Varejão, Bia Leite e Fernando Baril fazem apologia, respectivamente, à zoofilia, à pedofilia e à profanação, o grupo que encabeçou o levante pelo fechamento da exposição acabou reforçando aquilo que quis ver nas imagens. E, assim, lembrou que a perversidade da censura está menos no conteúdo indesejado do que no caráter proibitivo do ato em si. Regimes totalitários bem conhecem a força dessas estratégias interessadas no controle social.
É verdade que a forma como a curadoria usou as obras acabou sendo tendenciosa por acrescentar a elas sentidos que pouco têm a ver com as particularidades de suas gêneses. A abordagem da exposição instrumentalizou os trabalhos a serviço do discurso curatorial, usando-os como ilustração de um panfleto político. Algo lamentável, considerando que as questões de minorias e diferenças convocadas pelas teorias queer necessitam de uma necessária e urgente integração aos debates da sociedade no Brasil e no mundo.
É salutar e legítimo que pais atentem ao conteúdo das imagens a que seus filhos são expostos, assim como deveria ter sido prerrogativa de responsabilidade do curador da exposição e também da instituição exibir as obras de uma maneira adequada à classificação indicativa. Contudo, soa no mínimo intransigente e embrutecedor tomar as obras da exposição Queermuseu a partir de uma leitura literal que parece desconhecer a faculdade humana de simbolizar e interpretar.
Uma exposição de arte deve ser vista como uma circunstância de produção de conhecimento. O fechamento precipitado da mostra pelo Santander Cultural representou o oposto, na medida em que fez valer a visão de um grupo sobre os outros, como resultado de uma tática de instrumentalização da arte. Uma tática que pode até ter conseguido sua vitória com o encerramento da exposição, mas que não foi tão bem-sucedida diante da repercussão que fez amplificar a circulação das imagens das obras acusadas, a ponto de alcançarem muito mais pessoas do que o público que já as havia visto em exposições anteriores até então.
Por tudo isso, é absolutamente indefensável pregar o fechamento da exposição. É com a mostra aberta que a discussão deveria ter sido conduzida publicamente, como modo responsável e agregador de oferecer uma contribuição à sociedade apostando na inteligência e no esclarecimento. Pois é somente a partir do questionamento das bases e dos limites dos nossos saberes e convicções que se pode reconstruir um âmbito comum de compreensões e afetos, abrindo passagens possíveis para a renovação das sensibilidades e a ampliação dos imaginários.
*Jornalista, crítico de arte e pesquisador. Doutorando em Artes Visuais - História, Teoria e Crítica (UFRGS)