Apesar do Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul (MPF-RS) ter recomendado, na última quinta-feira (28), ao Santander Cultural a imediata reabertura da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença da Arte Brasileira até o dia 8 de outubro, a instituição decidiu não retomar a mostra. Em um comunicado sucinto, o Santander Cultural se limitou a anunciar que a Queermuseu não será reaberta, sem dar maiores justificativas.
Leia a nota do Santander Cultural:
"A mostra Cartografias da Diferenças da Arte (sic) teve sua exibição finalizada no Centro Cultural de Porto Alegre, de cunho privado, no dia 10.9.17 e não será reaberta conforme comunicado do mesmo dia".
Acusada de conter obras que ofendiam símbolos católicos e que faziam apologia à pedofilia e à zoofilia, a Queermuseu foi precocemente cancelada no último dia 10. O prazo do MPF para que o Santander respondesse a recomendação era de 24 horas. A instituição não é obrigada a seguir a sugestão dos procuradores, mas corre o risco de enfrentar uma ação judicial.
A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão ressaltou que os organizadores da exposição poderiam adotar medidas informativas ou de proteção à infância e à adolescência no que diz respeito a eventuais representações de nudez, violência ou sexo nas obras expostas e também medidas visando a garantia da segurança das obras e dos visitantes.
Outra recomendação do MPF era de que o museu realizasse, a seu custo, uma nova exposição em proporções e objetivos similares a que foi interrompida e que esta esteja aberta ao público em um período não inferior a três vezes o tempo em que a Queermuseu permaneceu sem visitação.
O procurador da República Fabiano de Moraes, procurador regional dos Direitos do Cidadão, ressaltou no texto da recomendação que o precedente do fechamento de uma exposição artística causa um efeito deletério a toda liberdade de expressão artística, trazendo a memória situações perigosas da história da humanidade como os episódios envolvendo a "Arte Degenerada", com a destruição de obras na Alemanha durante o período de governo nazista.
Segundo o procurador, as obras que trouxeram maior revolta em postagens nas redes sociais não tem qualquer apologia ou incentivo à pedofilia, conforme manifestação pública, divulgada por diversos meios de comunicação, dos promotores de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul com atribuição na garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes que estiveram visitando as obras.
Para Fabiano, as principais polêmicas que cercaram a exposição Queermuseu seriam contornadas, em grande parte, com a inclusão de informação, por parte dos organizadores, de aviso aos responsáveis por crianças e adolescentes no que se refere ao teor de algumas obras existentes na exposição, mesmo que tal exigência não esteja clara no Estatuto da Criança e Adolescente.
Leia a nota do MPF na íntegra:
O Ministério Público Federal, por meio do Procurador da República signatário, no exercício das atribuições de Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, e com fundamento nos arts. 129, II e III, da CF e art. 6º, XX, da LC 75/93, e nos termos da Res. CSMPF nº 87/2006,
CONSIDERANDO o teor das representações recebidas nesta PRDC, tanto favoráveis quanto contrárias ao teor da exposição "Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira" e dos eventos que culminaram com o encerramento abrupto da exposição em exibição no Santander Cultural, pelos patrocinadores da mostra, no dia 10 de setembro de 2017;
CONSIDERANDO que a exposição, conforme resumo constante no sítio eletrônico Versalic, do Ministério da Cultura, é "uma exposição que busca explorar a diversidade na arte e na cultura contemporânea através de um conjunto de obras que percorrem um arco histórico de meados do século 19 até a contemporaneidade."
CONSIDERANDO que um dos objetivos gerais da exposição, exposto na mesma plataforma, refere a “uma exposição que visa dar projeção à cultura contemporânea, através das inúmeras questões de gênero que ultrapassam os mais diversos aspectos da contemporaneidade" (grifei);
CONSIDERANDO que os próprios itens de divulgação da exposição afirmavam de que se tratava da "primeira exposição com abordagem Queer realizada no Brasil, que traz um recorte totalmente inédito na América Latina."
CONSIDERANDO que, segundo o próprio curador da exposição, o termo queer "designa um significante não normativo, que se refere a uma multiplicidade de posições, identidades, práticas e expressões de gênero, que rompem com a heteronormatividade e atuam fora das categorias binárias".
CONSIDERANDO que o fechamento abrupto da exposição, ainda que por alegadas situações de segurança, possuem um impacto negativo tanto em relação à liberdade artística, quanto em relação ao respeito à diversidade;
CONSIDERANDO que art. 3º, IV da Constituição Federal que estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;
CONSIDERANDO que a igualdade como reconhecimento enseja a não marginalização de determinados grupos em razão de sua identidade, religião, aparência física ou sua expressão de gênero;
CONSIDERANDO ainda que mesmo atos aparentemente neutros podem caracterizar uma discriminação indireta ao colocar uma pessoa ou grupo minoritário, em posição de desvantagem comparativamente com outras;
CONSIDERANDO que conforme o art. 216, IV da Constituição Federal, se incluem no patrimônio cultural brasileiro as obras, objetos, documentos edificações e demais espaços destinados às manifestações artísticas e culturais;
CONSIDERANDO que o § 4º, do mesmo dispositivo constitucional informa que os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei;
CONSIDERANDO que a liberdade de expressão não se esgota no dever de abstenção do Estado em praticar atos de censura, necessitando também por parte dele e dos por ele patrocinados exercerem ações positivas visando a possibilidade real de exercício e o aprofundamento dos debates sobre os mais diversos aspectos da sociedade;
CONSIDERANDO que na atualidade moderna, os meios de comunicação virtual, exercem impacto, negativo ou positivo, sobre as pessoas, cabendo atuações positivas voltadas a não repressão de ideias, inclusive aquelas rejeitadas pela maioria;
CONSIDERANDO que a liberdade de expressão constitui direito assegurado constitucionalmente e vital para a dignidade humana;
CONSIDERANDO que as obras que trouxeram maior revolta em postagens nas redes sociais não tem qualquer apologia ou incentivo à pedofilia, conforme manifestação pública, divulgada por diversos meios de comunicação, dos Promotores de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul com atribuição na garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes que estiveram visitando as obras;
CONSIDERANDO que as principais polêmicas que cercaram a exposição Queermuseu seriam contornadas, em grande parte, com a inclusão de informação, por parte dos organizadores, de aviso aos responsáveis por crianças e adolescente referente ao teor de algumas obras existentes na exposição, mesmo que tal exigência não exista no Estatuto da Criança e Adolescente;
CONSIDERANDO que o precedente do fechamento de uma exposição artística causa um efeito deletério a toda liberdade de expressão artística, trazendo a memória situações perigosas da história da humanidade como os episódios envolvendo a "Arte Degenerada" (Entartete Kunst), com a destruição de obras na Alemanha durante o período de governo nazista;
CONSIDERANDO que a exposição contou com financiamento indireto federal, via renúncia fiscal, existindo a obrigação conjunta dos patrocinadores em cumprir o objeto previsto na exposição em detrimento dos artistas e do patrimônio artístico;
CONSIDERANDO que um dos patrocinadores do local da exposição é uma instituição bancária que tem expertise e totais condições de realizar procedimentos de segurança que garantam tanto a segurança das obras expostas, quanto dos visitantes, inclusive impedindo acesso de qualquer material que possa danificar as obras;
CONSIDERANDO que as negociações visando a reabertura da exposição tratadas com os responsáveis, inclusive eventual manutenção da exposição em outro local resultaram infrutíferas;
Resolve, com fulcro no artigo 6º, inciso XX, da Lei Complementar n. 75/93, recomendar ao SANTADER CULTURAL que:
a) providencie a imediata reabertura da exposição "Queermuseu – Cartografias da diferença da arte brasileira" minimamente pelo período em que estava previsto originalmente seu encerramento, sem prejuízo de adotar: (i) medidas informativas ou de proteção a infância e a adolescência no que diz respeito a eventuais representações de nudez, violência ou sexo nas obras expostas e (ii) medidas visando a garantia da segurança das obras e dos visitantes;
b) a título de compensação pelo período em que a exposição permaneceu sem acesso ao público em geral, realize, a suas expensas, nova exposição em proporções e objetivos similares a que foi interrompida, preferencialmente com temática relacionada a diferença e a diversidade, e que esteja aberta aos visitantes em período não inferior a três vezes o tempo em que a "Queermuseu" permaneceu sem visitação.
Esclarece o Ministério Público Federal que o não acatamento infundado do presente documento, ou a insuficiência dos fundamentos apresentados para não acatá-lo total ou parcialmente poderá ensejar a adoção das medidas judiciais cabíveis.
Com fundamento no art. 6º da LC 75/93, parte final do inciso XX, o Ministério Público Federal fixa o prazo de 24 (vinte e quatro) horas para responder se acatará ou não a presente recomendação, informando as medidas adotadas.
Porto Alegre, 28 de setembro de 2017.
Fabiano de Moraes
Procurador da República Procurador Regional dos Direitos do Cidadão