Não foi a primeira provocação de Marcel Duchamp (1887 – 1968), mas foi a mais célebre. E transformou a arte desde então. O criador francês teve a ideia em uma conversa com o também artista Joseph Stella (1877 – 1946) e o colecionador Walter Arensberg (1878 – 1954), em Nova York, em 1917. Duchamp comprou um urinol, intitulou-o Fonte e assinou como R. Mutt. Enviou para a Sociedade dos Artistas Independentes, que ele mesmo havia ajudado a fundar, mas a obra foi recusada e se perdeu, sem jamais ter sido exibida.
Nos anos 1950 e 60, no entanto, artistas contemporâneos viram no ready-made de Duchamp uma inspiração para seus trabalhos, e o próprio autorizou a confecção de réplicas, que hoje estão expostas em alguns dos principais museus do mundo.
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Cem anos depois da provocação que virou arte, o legado da Fonte é duplo. Por um lado, os procedimentos empregados – valorização do conceito, apropriação de elementos etc – estão profundamente integrados na arte contemporânea, expressão que é sinônimo de prestígio institucional e cifras vultosas. Por outro, o público não especializado continua questionando: isso é arte?
Essa é a história celebrada na exposição A Fonte de Duchamp: 100 Anos da Arte Contemporânea, que será aberta nesta terça-feira, às 19h, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli. O curador José Francisco Alves selecionou mais de cem obras de cerca de 50 artistas do Estado, de outras regiões do Brasil e alguns do Exterior, todas pertencentes ao acervo do museu. Os trabalhos abarcam um amplo intervalo de produção, entre as décadas de 1960 e 2010, mas a presença de Duchamp nem sempre é óbvia: pode estar em um procedimento formal ou em elementos como humor e jogo.
Já a Fonte estará à mostra apenas como uma fotografia no painel explicativo. Em julho, o curador vai inaugurar a segunda parte da homenagem, com uma exposição no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul que contará com trabalhos criados para a ocasião.
– Duchamp pode ser considerado o artista mais importante do século 20, mais do que Picasso em termos de influência – defende Alves. – Ele foi um grande precursor de tudo que está aí. As vanguardas, os “ismos”, trabalhavam em cima da forma, mas ele deu um passo maior, disse que a arte é mental. Ele foi revolucionário.
Enquanto a Revolução Russa virou história, na comparação proposta pelo curador, a obra de Duchamp criada no mesmo ano segue intrigante:
– Ele questionava o sistema da arte, mas essa manifestação provocadora foi cooptada pelo mercado. As réplicas da Fonte são obras museológicas com altíssimo valor, protegidas com um aparato de segurança. No século 21, há uma valorização de artistas vivos como nunca. É uma ironia, talvez nem Duchamp esperasse isso.
Ao mesmo tempo, na visão de Alves, a familiaridade cada vez maior do público com a arte contemporânea pode ser vista como um trunfo para o qual o artista francês contribuiu de forma decisiva:
– Com as bienais, as pessoas podem continuar achando questionável, mas já sabem que é arte contemporânea. “Instalação” é uma palavra que até as crianças conhecem.
A Fonte de Duchamp: 100 Anos da Arte Contemporânea
Abertura nesta terça-feira, às 19h. Visitação de quarta-feira a 23 de abril, de terças a domingos, das 10h às 19h.
Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Praça da Alfândega, s./n), fone (51) 3227-2311. Entrada franca.
A exposição: apresenta mais de cem obras de cerca de 50 artistas do Estado, de outras partes do Brasil e do Exterior nas quais se destacam relações com a Fonte (1917), de Marcel Duchamp. As produções pertencem ao acervo do Margs.