Engana-se quem pensa que André Severo vai inaugurar nesta quinta-feira (16/3) duas exposições. Trata-se de apenas uma, mas que ocorre simultaneamente em dois espaços de Porto Alegre: a Galeria Bolsa de Arte e a Pinacoteca Ruben Berta. As metades se complementam e se refletem, como bem sugere o título, Espelho.
– Nunca havia exposto desta maneira e infelizmente não tinha referência de nenhum trabalho que pudesse me ajudar a resolver algumas das complicações que apareceram no decorrer do processo – conta o artista.
Durante a elaboração do projeto, Severo teve a sensação de que o único lugar em que a mostra se completa é em sua mente, na "projeção de continuidade temporal e espacial" que imaginou entre os dois espaços. Desenhou a exposição como sendo apenas uma, sem direcionar de antemão as obras para cada parte. Foi no desenvolvimento, ao travar contato com as características dos locais, que percebeu de forma mais clara as distinções temporais e espaciais.
Mas que itinerário Severo recomenda ao público? Visitar uma atrás da outra ou uma a cada dia para melhor digerir a experiência?
– Não creio que a maneira com que as exposições serão visitadas faça muita diferença na apreensão final do projeto, pois, mesmo individualmente, na lógica pensada para estruturar cada uma das exposições, levo em consideração que o corpo do espectador é ativo e que ele poderá, a qualquer momento, reestruturar e subverter a lógica das vinculações que propus.
Contemplada com o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2015, a mostra foi elaborada como uma investigação sobre o tempo e a memória como elementos de vinculação entre fotografias, filmes e textos que o artista produzia. Conforme o trabalho avançava, o artista percebeu que as imagens se "potencializavam" ao se relacionarem com outras imagens, textos, formas e símbolos. Daí surgiu o conceito de duplo, traduzido não apenas em dois espaços expositivos como também na presença de obras de outros artistas pinçadas dos acervos das pinacotecas Ruben Berta e Aldo Locatelli. Estarão expostos nove vídeos, 22 fotografias, 14 páginas de textos e 18 pinturas dos acervos referidos.
Espelho integra uma trilogia de exposições iniciada com Metáfora, parceria com Paula Krause, de 2015. Atualmente, Severo trabalha na terceira e última, que levará o título Labirinto.
ESPELHO, DE ANDRÉ SEVERO
Abertura nesta quinta-feira (16/3), às 19h, na Galeria Bolsa de Arte. Visitação de sexta (17/3) a 30 de abril, em dois espaços:
Galeria Bolsa de Arte (Rua Visconde do Rio Branco, 365), de segundas a sextas, das 10h às 19h, e sábados, das 10h às 13h30min.
Pinacoteca Ruben Berta (Duque de Caxias, 973), de segundas a sextas, das 14h às 18h.
Entrada gratuita
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Leia, na íntegra, a entrevista com André Severo concedia por e-mail a Zero Hora:
Como surgiu a ideia de criar uma exposição que ocorre, simultaneamente, em dois espaços?
A exposição é o resultado do XV Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2015. Assim, inicialmente o projeto tinha por objetivo uma investigação sobre tempo e memória como elementos estruturadores de vinculações entre algumas fotografias, filmes e textos que eu estava produzindo. Com o andamento do projeto, contudo, comecei a perceber que muitas das imagens que estava trabalhando, apesar de guardarem significado nelas mesmas, se potencializavam quando estavam relacionadas com outras imagens, outros textos, outras formas, outros símbolos.
Tentando entender mais profundamente a natureza destas vinculações, comecei a imaginar a possibilidade de realizar uma exposição que não funcionasse apenas como uma entidade autossustentada e absoluta – ou seja, que não privilegiasse apenas os vínculos e as relações que poderiam ser imediatamente visíveis no espaço expositivo. A partir disto, o projeto acabou evoluindo para a tentativa de criação de uma mostra que possuísse uma espécie de duplo – uma outra exposição, estreitamente relacionada com a primeira, mas que fosse composta por outras obras (inclusive obras que não são de minha autoria e que selecionei dos acervos das Pinacotecas Ruben Berta e Aldo Locatelli), que fosse instaurada em outro espaço expositivo e que, justamente por isso, pudesse estabelecer outras relações espaciais e temporais, outras vinculações (ou desvinculações) simbólicas e imagéticas.
Como você recomenda que o público visite a exposição?
Sendo muito sincero, acho que ainda não tenho distanciamento suficiente para fazer uma sugestão deste tipo. Eu me preparei para fazer uma montagem muito longa deste projeto – principalmente porque sabia que muitas das coisas que precisava entender sobre a exposição somente viriam à tona no momento em que eu estivesse com as obras nos espaços expositivos.
Desta forma, mesmo tendo em vista que a exposição iria se dar em dois locais distintos, eu desenhei a mostra como uma coisa única – sem direcionar aprioristicamente nenhuma obra para nenhum dos locais especificamente. Na medida em que as exposições tomaram sua forma final (e os espaços expositivos impuseram suas características naquilo que, até então, ainda era um pensamento sem forma definida) é que eu pude começar a perceber mais claramente as distinções temporais e espaciais entre as exposições, os intervalos diferenciais entre as obras e entre os locais em que estão instaladas – que é, creio, onde reside o sentido das vinculações e desvinculações propostas no projeto.
Nesse sentido, não creio que a maneira com que as exposições serão visitadas faça muita diferença na apreensão final do projeto; pois, mesmo individualmente, na lógica pensada para estruturar cada uma das exposições, levo em consideração que o corpo do espectador é ativo e que ele poderá, a qualquer momento – tanto objetiva, quanto subjetivamente –, reestruturar e subverter a lógica das vinculações que eu propus.
Você já havia exposto dessa forma? Algum artista lhe inspirou a fazer dessa forma?
Não, nunca havia exposto desta maneira e infelizmente não tinha referência de nenhum trabalho que pudesse me ajudar a resolver algumas das complicações que apareceram no decorrer do processo. Como montei os dois espaços ao mesmo tempo (literalmente dividindo meu tempo entre o espaço da Pinacoteca e o da Bolsa de Arte), uma destas complicações foi a sensação permanente de que o único lugar em que a mostra se completava era na minha cabeça – na projeção de continuidade temporal e espacial que eu criei (e que não era, necessariamente, real) entre os dois espaços.
Levando em consideração que a exposição, para além de privilegiar os vínculos e as relações entre as obras que a compõem, acabou tomando forma também como uma investigação sobre as possibilidades associativas e dissociativas de imagens dentro dos ambientes expositivos em que ela se instaura, acredito que ela possa, de alguma forma, agora que está pronta, dar um testemunho muito pessoal não somente da imponderabilidade da experiência criativa, mas também da eminente relação de qualquer projeto artístico com os condicionantes espaciais e temporais que definem muitas de suas possibilidades de apresentação.
Como essa ideia dos espaços simultâneos dialoga com o conceito de espelho, presente no título?
De fato, eu pensei os dois ambientes da exposição como uma espécie de espelho (onde os vídeos, fotografias, textos e pinturas, apesar de diferentes, parecem não somente se complementar, mas também se refletir). Todavia, a noção de espelho, como algo que revela, que reproduz, como algo que serve de modelo, está inserido em outras partes da exposição – principalmente nos pequenos textos em espanhol que pontuam e estruturam toda a mostra e que, entre outras tantas ponderações e reflexões, falam do mundo, do ambiente, da paisagem e do tempo, como um espelho do homem (ou ainda, da escritura humana como sendo um reflexo da escritura do universo, sua tradução, sua metáfora, seu espelho).
Como e por quê você escolheu justamente estes dois locais, a Pinacoteca Ruben Berta e a Galeria Bolsa de Arte?
A Coordenação de Artes Plásticas da Prefeitura de Porto Alegre foi parceira do projeto desde que ele foi inscrito no XV Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2015. Entretanto, até meados do ano de 2016, ainda não havíamos definido o local em que a exposição seria realizada. O espaço da Pinacoteca Ruben Berta como um local possível somente surgiu em conversas com a Coordenação a partir da ideia de utilizar algumas obras de seu acervo como pontuações para os fotografias, os vídeos e os textos que eu estava produzindo – isto um pouco antes da exposição se estruturar em dois espaços distintos.
Quando as obras começaram a ser produzidas e o projeto passou a contar com a necessidade de um segundo espaço de instauração, minha primeira motivação foi a de procurar um espaço complementar que não estivesse imediatamente vinculado com a prefeitura. Logo que comecei a investigar os locais na cidade que poderiam abrigar a proposta, surgiu o convite da Bolsa de Arte para realizar a exposição também lá. Como toda minha prática artística e intelectual sempre esteve pautada pela criação de novas maneiras de atuar em conjunto com os diversos agentes do sistema – pois tenho convicção de que este é um dos fatores que podem permitir aos artistas e aos demais agentes do cenário artístico e cultural um diálogo ampliado com seus pares, com a sociedade como um todo e também com o próprio sistema das artes –, me pareceu fazer todo o sentido tentar estabelecer estes vínculos entre meu projeto, a galeria e a Coordenação de Artes Plásticas do município.
Que tipos de obras e suportes você está expondo?
A exposição é composta por nove vídeos projetados na parede, 22 fotografias de grandes dimensões ampliadas em tecido e estruturadas em bastidores de pintura, 14 páginas de textos datilografados emoldurados e uma seleção de 18 pinturas dos acervos das Pinacotecas Ruben Berta e Aldo Locatelli.
Quais os conceitos e ideias que inspiraram esta exposição? Como esses temas dialogam com sua produção artística em geral, com os trabalhos realizados antes?
Considero a experiência com a arte como um dos principais instrumentos de acesso (e confronto) não somente a alguns de nossos questionamentos interiores mais inquietantes, mas também de certas – ou incertas – imposições exteriores dos ambientes, situações e contextos em que nos encontramos inscritos.
Penso que, mais do que em qualquer outro terreno especulativo, o conhecimento gerado pela prática artística (ao traduzir e reconstituir linguagens, pensamentos, semipensamentos, ideias e teorias e ao instaurar-se como campo de reflexão aberto ao trânsito, ao desvio, à passagem) é faculdade inevitável e naturalmente exposta à influência das interpretações, visões de mundo, hierarquias de valores, expectativas, esperanças e emoções que engendramos, cada um de nós, incessantemente, em nossa passagem pelo entreato existencial que nos compete.
Talvez por isso, a meu ver, a incumbência principal daquele que se dispõe, voluntariamente, a deambular pelo território movediço da experiência com a arte deva ser, em última instância, a de cruzar fronteiras, alargar comarcas e violar limites; a de perceber que além das demarcações que separam novas linguagens de antigas representações abrem-se, efetivamente, zonas de estranheza capazes de relativizar prescrições jurídicas, soberanias e legislações territoriais e estimular o surgimento de novas linguagens, novas formas, novas estruturas de conhecimento.
Estas são noções que não somente estão na base desta exposição, mas que também permeiam toda a minha construção poética, curatorial e intelectual. Ainda assim, Espelho tem, para mim, algo diferente de todos os trabalhos e projetos que realizei em minha trajetória artística até aqui: esta mostra (que faz parte de uma trilogia de exposições que iniciei em 2015 e que teve início com uma exposição que fiz em Brasília, intitulada Metáfora, em parceria com Paula Krause), guarda a característica de entrelaçar, de alguma maneira que não me é inteiramente clara ainda, diversos aspectos (filme, texto, imagem, ação e curadoria, por exemplo) que muitas vezes não me pareciam convergentes em meus projetos anteriores.
Você pode adiantar os seus próximos projetos?
No momento, estou trabalhando na terceira parte da trilogia que mencionei acima e que será intitulada Labirinto. Além disso, estou começando um projeto de curadoria, em parceria com Marília Panitz, de uma mostra que celebrará os cem anos de nascimento de Athos Bulcão e que deverá ser realizada em três capitais brasileiras em 2018.