No final da década de 1980, o arquiteto Oscar Niemeyer, papa do modernismo brasileiro, fez um pedido especial ao então prefeito de Niterói, Jorge Roberto Silveira, que estava prestes a embarcar para Cuba. Como a agenda de Silveira previa uma audiência com Fidel Castro, Niemeyer solicitou-lhe que entregasse uma carta ao líder da revolução cubana, na qual informava ter indicado o amigo ao Prêmio Lenin da Paz. Após ler a mensagem, Fidel coçou a barba e, por alguns instantes, ficou em silêncio, antes de comentar:
– Parece mentira. Só sobraram dois comunistas no mundo: o Niemeyer e eu.
O episódio, que soa como anedota, é absolutamente verídico e me foi relatado pelo próprio ex-prefeito de Niterói, quando escrevi um texto biográfico sobre Niemeyer, nos anos 1990, época em que o bloco soviético já havia desmoronado como um castelo de cartas. Só que Fidel não estava correto. Pelo menos no Rio Grande do Sul, havia outro comunista de carteirinha: o ator, diretor e produtor de teatro Jairo de Andrade, que morreu no último dia 30 de dezembro, aos 88 anos. Tanto é verdade que um sonho recorrente acompanhou Jairo na adolescência, em Uruguaiana (terra natal): com os pés afundados na lama e vestido com um grosso capote, o rapaz estava diante de uma porteira, daquelas que demarcam os limites de propriedades rurais; do outro lado da cerca, uma névoa cobria uma terra mítica, que ele sabia ser a Rússia, onde reinava o comunismo.
No sonho, Jairo jamais transpôs a porteira entre a realidade e a utopia, mas ele perseguiu os seus ideais por toda a vida. Nos anos 1960, após a apresentação de O Elefante no Caos, de Millor Fernandes, no Theatro São Pedro, pelo Grupo de Teatro Independente, do qual fazia parte, ele voltava a pé para casa, quando percebeu um odor insuportável ao descer a escadaria do Viaduto Otávio Rocha.
– Tenho olfato aguçado, porque sou de origem camponesa – dizia.
O mau cheiro vinha de um porão inundado após estouro do encanamento de esgoto. Pensou: “Aqui dá para fazer um teatro”. Nascia o Teatro de Arena, em 1967, adquirido em suaves prestações quitadas seis anos depois, com o sucesso de À Flor da Pele, de Consuelo de Castro. Amigo pessoal de Augusto Boal e Gian Francesco Guarnieri, do Arena de São Paulo, Jairo montou uma espécie de posto avançado da turma em Porto Alegre. Espetáculos paulistas eram trazidos para cá, enquanto o Arena gaúcho produzia montagens de sucesso nacional, como Mockinpott, de Peter Weiss. Nos anos 1970, com a companheira e atriz Marlise Saueressig (falecida em 2022), Jairo também criou a estrutura profissional do teatro mambembe ao percorrer o circuito universitário pelo interior gaúcho.
– Viajávamos 40 dias de Kombi. Capotamos algumas vezes – contou.
Nos últimos anos de vida, Jairo se tornou um “patrão comunista” ao administrar a Casquinha, fábrica de componentes de calçados, em Campo Bom. Em 2002, a Casquinha foi destaque de exportação e, como prêmio, ele acompanhou uma comitiva governamental à Europa. Em Treves, na Alemanha, onde nasceu Karl Marx, não resistiu à tentação de ser fotografado junto à escrivaninha em que foi escrito O Capital, obra que fundou o marxismo. Mas a melhor parte da viagem estava por vir. Em Moscou, ao visitar o mausoléu de Lenin, lembrou daquele sonho da adolescência. Debruçou-se, então, sobre o túmulo de seu herói embalsamado e chorou copiosamente, feito criança.