No verão de 1946, o repórter da Revista do Globo Justino Martins resolveu abordar a situação dos negros brasileiros e, para isso, decidiu visitar as gafieiras — salões de baile em que os pretos se divertiam em cidades como Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Na edição nº 404, de fevereiro daquele ano, depois de comentar a notícia de que um conhecido músico branco teria sido barrado ao tentar ver um show da orquestra de Duke Ellington num salão de dança de Washington (EUA), Justino cita um fato ocorrido com ele próprio, “quando, dias atrás — qual um diletante de ambientes —, procurava avivar impressões para este assunto”.
Escreve ele: “Tentando entrar num salão de bailes de negros, localizado na Rua João Alfredo, em Porto Alegre, o porteiro barrou-me à porta mesmo, ante a apresentação do ingresso, perguntando-me num visível tom de arrogância: ‘Você é branco, rapaz. Que é que quer fazer aqui? Não pode entrar, não. Vá dançar na sua zona’’’.
O jornalista afirma que fatos como este não “depõem contra a delicadeza dos negros para com os brancos, mas confirmam que algum sentimento existe, e as suas causas não serão gratuitas”. Isso, para ele, “mostra-se, antes de tudo, como uma reação consciente contra o menosprezo que se tem votado ao negro, nas nossas capitais, principalmente”.
Em São Paulo, por exemplo, quando os negros passaram a frequentar, especialmente nos finais de semana, a Rua Direita, com seus lugares de lazer e as suas vitrines chiques, houve uma manifestação (tipicamente fascista, segundo Justino) de alguns dos comerciantes, que, “dois anos atrás (em pleno Estado Novo), enviaram um memorial à prefeitura, a fim de proibir o tráfego de negros pelas ruas Direita e São Bento”. Automaticamente, os negros iniciaram um protesto, sendo este abafado pela polícia da ditadura. Mas a imprensa democrática tomou-lhes a defesa, e o ousado memorial acabou adormecendo na gaveta do prefeito paulista.
Relata Justino: “Há um burburinho escuro na extremidade oculta da Praça Garibaldi, em Porto Alegre. O som da música escapa pelas duas janelinhas e mergulha no macegal sinistro do riacho. Lé dentro, o baile está no auge. Neste, consigo entrar, guiado pela mão do sambista Lupicínio Rodrigues, imperador da zona. Haverá alguma diferença entre as gafieiras de Porto Alegre, São Paulo, Rio e Bahia? De um modo geral, os costumes dos negros brasileiros que frequentam os salões de dança das nossas capitais, são os mesmos. Na Praça Garibaldi, observa-se, curiosamente, maior nacionalismo nas danças. O samba e as marchinhas carnavalescas imperam ali. Lupicínio, satisfeito, pede que eu escute, do fundo da sala, longe da orquestra, o chiado dos pés dos bailarinos marcando maravilhosamente o compasso da dança. Em homenagem à chegada do sambista, estão tocando a sua composição, intitulada Meu Pecado, popular em todo o Brasil. E a melodia me recorda a gafieira paulista, localizada atrás do Largo da Sé”.