“Sabido que o sistema de saneamento nas cidades brasileiras foi por muito tempo o do “tigre” — o barril que ficava debaixo da escada dos sobrados, acumulando matéria dos urinóis, para ser então conduzido à praia pelos negros — facilmente se imagina a inferioridade, neste ponto, das casas burguesas ou urbanas com relação às de fazenda, engenho ou de estância.” Gilberto Freyre, no livro Sobrados e Mucambos.
Em 1890, Porto Alegre tinha uma população de 52.186 habitantes, mas havia somente 2.744 penas (torneiras) de água instaladas em domicílios. Chafarizes, para atender a população, havia oito, além de uma bica, na Rua Coronel Fernando Machado. A maioria dos moradores, e dos estabelecimentos comerciais, adquiria água de pipeiros, que circulavam de porta em porta. Logo, esgoto cloacal, nem pensar!
Pouco mais de cem anos atrás, as casas não tinham banheiros. Usava-se o penico ou, mais polidamente, o urinol. Para onde ia o material recolhido, guardado sob as camas durante a noite?
Nas residências da periferia, ia para a “casinha” construída no fundo do terreno, sobre um buraco no solo que recebia os dejetos que se infiltravam na terra. Na área central, na ausência da casinha, o material do penico era depositado num cubo sanitário, um cilindro de madeira, tipo um barril magro, espécie de balde um pouco mais alto e cônico, provido de uma tampa hermeticamente fechada. Os cubos, ou cabungos, como eram popularmente chamados, permaneciam então guardados sob as escadas ou em alguma área de serviço até que, uma ou duas vezes por semana, eram recolhidos pelos cabungueiros, em uma carroça de tração animal, e levados até um local de despejo.
Esta operação estava a cargo da empresa privada Asseio Público, concessionária municipal desde 1879. O conteúdo dos cubos era despejado no Guaíba, em alguns pontos designados para essa função pelo Conselho Municipal (equivalente à Câmara de Vereadores), onde haviam trapiches para isso. Um desses locais era ao lado do Cadeião (Casa de Correção, construída entre 1852 e 1855), na extremidade da península onde, em 1928, foi instalada a Usina do Gasômetro.
Essa operação de desova dos dejetos e matéria fecal junto à região mais urbanizada da cidade causava grande incômodo e constrangimento para a população; isso, somado às questões de saúde pública, passou a exigir providências. A solução não foi implantar uma rede de esgoto, mas sim afastar o problema para mais longe.
Surgiu, assim, a ideia da construção de uma ferrovia até a Ponta do Dionísio (onde hoje está o Clube Veleiros do Sul), cerca de 10 quilômetros distante do Centro. O local foi definido por uma “comissão médica” como apropriado para receber os dejetos. Esse caminho ferroviário, cuja implantação foi decidida em 1893, deu origem à Ferrovia do Riacho, que, posteriormente, seria estendida até a Tristeza com a adoção de vagões para passageiros.
Mas, antes de a ferrovia chegar à Ponta do Dionísio, entraves burocráticos e fundiários obrigaram a administração municipal a mudar os planos, e um novo local para os despejos foi definido: a Ponta do Melo (próximo de onde fica hoje a Fundação Iberê Camargo, onde existiu o Estaleiro Só e, agora, está sendo erguido um grande complexo imobiliário). Ali, um pouco mais perto do Centro, foi construído o trapiche para descarga.
No final do século 19, a capital gaúcha tinha ruas estreitas, becos sujos, esgoto a céu aberto e fornecimento de luz e água precário ou quase inexistente. Enfim, uma cidade muito afastada dos ideais de ordem e progresso da República recém proclamada. Era preciso mudar.
Fonte: livro A Ferrovia do Riacho – Do Sanitarismo à Modernização de Porto Alegre, de André Huyer