Poucas vezes um garçom encarnou tão bem a imagem de um bar quanto Isake Plents d’Oliveira, que circulou por entre as agitadas mesas do Alaska de março de 1973 a julho de 1985. O ponto era a lendária Esquina Maldita (como ficou conhecido o encontro da Avenida Osvaldo Aranha com a Rua Sarmento Leite), local em que se reunia boa parte da juventude da Capital nos anos 1960 e 1970.
— No Alaska, eu me sentia em casa — dizia Isake.
Nos bancos duplos de madeira com espaldar alto, que Alfredo Ribeiro, dono do Alaska, havia encomendado sob medida da marcenaria do Pão dos Pobres, acotovelavam-se militantes políticos e adeptos da contracultura. À boca pequena — afinal, estávamos em plena ditadura militar —, eram tramadas greves e passeatas (boa parte dos frequentadores aderiu à luta armada), ao passo que, na mesa ao lado, a conversa girava sobre canções de Caetano Veloso ou filmes de Jean-Luc Godard, quando não acerca de temas como emancipação feminina, homossexualidade, filosofia oriental, drogas etc.
Em meio à ruidosa e diversificada fauna, Isake jamais perdeu o controle da situação. Tratava a todos como se fossem de sua própria família, mas não deixava ninguém fazer bagunça. Além disso, sabia contornar saias justas — quando achava uma ponta de baseado (cigarro de maconha) caída do bolso de algum cliente, ele, discretamente, guardava a contravenção para devolvê-la ao legítimo proprietário na noite seguinte. A cumplicidade vinha sem alarde, sem um comentário sequer.
Nascido em 4 de dezembro (Dia de Santa Bárbara, como fazia questão de frisar) de 1930, em Camaquã, no sul do Estado, Isake havia se criado em Butiá, na Região Carbonífera, onde, ainda criança, trabalhara em granjas de arroz. Aos 16 anos, passou a trabalhar na Capital, época em que carregou tijolos em obras da construção civil. Quando virou garçom, passou por restaurantes do tipo “prato pronto” da Zona Norte e por sociedades tradicionais, como a Associação Leopoldina Juvenil, além do Treviso — sagrado ponto etílico e gastronômico do Mercado Público, no qual trabalhou por 11 anos —, até viver o ápice da carreira no Alaska.
— Era um paizão, que atendia a todos com paciência e presteza. E olha que aguentar aquele bando não era fácil — comentou, certa vez, o músico Kleiton Ramil, da dupla Kleiton & Kledir.
Apesar de não ser religioso, o ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont acredita que o garçom merecia uma bênção celestial:
— O Isake deve ter ido para o céu. Além de atender sozinho no Alaska, se dava ao trabalho de passar bilhetinhos de paquera de uma mesa para outra. Sem falar que muitos saíam para beber e conversar na calçada, e ele tinha que ir atrás.
Quando o Alaska cerrou as portas, Isake trabalhou no Van Gogh, outro bar célebre da Capital, na esquina da Avenida João Pessoa com a Rua da República. Em junho de 1988, largou precocemente o avental devido à osteoporose, enfermidade que o obrigou a implantar dois parafusos de platina no quadril e a caminhar com ajuda de um andador. Tinha uma versão para o mal que o afligia:
— É a saudade dos amigos. Fiquei até doente depois que o Alaska fechou.
Para matar a saudade, guardava uma pasta de couro com cartões de visita de clientes, incluindo professores da França, que tinham vindo dar palestra na UFRGS. Junto, conservava também a carteira de “santo marido”, com assinatura da esposa, Maria Nelsy (com quem teve dois filhos e uma filha, os quais lhe deram sete netos).
— Foi uma brincadeira que o pessoal inventou para gozar da minha cara por ir sempre direto para casa depois do serviço — dizia Isake, que morreu, de insuficiência respiratória, em 8 de julho de 2012.