A propósito da matéria sobre a primeira ferrovia do Rio Grande do Sul, publicada em 15 de abril em Zero Hora, recebemos do leitor Rubens Correa Rechden a seguinte colaboração:
"Lendo a coluna, me lembrei da saga do meu bisavô, João Correa Ferreira da Silva (1863-1928), que deixou um imenso legado de obras e ideias, entre as quais a construção, com recursos próprios, da estrada de ferro entre Sander (Taquara) e Canela. Filho de um tenente da Guarda Nacional, aos sete anos teve que abandonar a escola que frequentou por apenas três dias, para ajudar a mãe, viúva pela morte prematura do marido na guerra do Paraguai. Isso não o impediu de se tornar uma das grandes figuras do nosso Estado, pela capacidade de empreender e pensar à frente de seu tempo.
Infelizmente, restam apenas algumas lembranças dos feitos, alguns documentos e, para mim, o que minha mãe contou desta figura lendária. Habilidoso, aprendeu o ofício de ferreiro e foi trabalhar em uma empresa inglesa.
Logo, revelou-se empreendedor ao assumir a construção de vagões baseado nos modelos até então importados da Inglaterra. A inteligência e a capacidade o levou ao Rio de Janeiro, onde se encantou com Petrópolis, vislumbrando o potencial de criar na serra gaúcha algo similar. Da ideia saiu a aquisição de uma grande área de terra em ‘Campestre Canella’, no limite do planalto rio-grandense.
Fundou, então, a cidade de Canela e passou a trabalhar no sonho de fazer da Serra um polo turístico, pelo ar fresco, as águas cristalinas dos córregos, que seriam atrativo para veraneios e, também, para recuperação dos ‘tísicos’, comuns então.
O legado dele inclui muitas obras, como a construção do cais de Montenegro, a abertura de estradas, entre as quais aquela onde hoje se assenta a BR-116, a idealização da barragem da Toca e a ideia, não consumada, de canalizar a água pura da Serra para abastecimento dos municípios vizinhos da Capital.
O maior feito, considerando as dificuldades financeiras, técnicas e logísticas, foi estender a linha férrea até Canela. E o fez de forma diligente e genial, por conta própria, aplicando todos os recursos que tinha na grande obra, inclusive pagando o preço pela debilitação da saúde do filho e parceiro, João Manoel (meu avô), que perdeu um pulmão em função de doença adquirida na empreitada.
iria ao trem subir com a dispendiosa construção de pontes e túneis, para que se tivesse curvas suaves o suficiente para a composição prosseguir. Os engenheiros não achavam outra solução.
Então, a genialidade aflorou: mediante um sistema de vai e vem, usando trilhos alternativos em ramais quase paralelos, desenhou um sistema no qual o trem andava de frente até um determinado ponto e então era desviado de ré, subindo a serra até o nível que poderia seguir. Um trem que subia ‘escada’! Em 1922, os trilhos finalmente chegaram a Canela.
Dentre as lembranças da minha infância, nos anos de 1950 e 1960, em verões passados no Grande Hotel Canela, a mais prazerosa era acordar com o apito do trem cedo pela manhã, enquanto ouvia o som das xícaras e pratos sendo colocados nas mesas e sentindo o cheirinho saboroso do café sendo preparado. Infelizmente, fruto de uma visão curta e da incapacidade de ver o potencial de exploração turística do trem, indo e vindo, a ferrovia foi desativada, dando lugar à rodovia que hoje liga Taquara a Canela.
Nossa pobreza cultural e, mais do que isso, falta de espírito empreendedor, destruiu um legado com potencial quase eterno, que geraria lucros para as gerações futuras, trazendo visitantes, como acontece em lugares preservados mundo afora. Esta indignação ganhou força quando, em recente viagem à Noruega, participei de um roteiro num trem do século passado, desde a cidade de Fläm até a beira do fiorde Sogne. No percurso quase igual, até em altura, ao da nossa Serra, são exibidas fotos e desafios da construção dessa via férrea na encosta da montanha, com ênfase na solução de problemas semelhantes aos enfrentados pelo meu bisavô, mediante a construção de um custoso túnel. Pensei: eu, um mero turista gaúcho, viajei 10 mil quilômetros para ser apresentado a uma obra que orgulha a engenharia norueguesa, mas inferior, em termos de solução, à que tínhamos aqui ao lado! Que tacanhos somos!
Infelizmente, a grande obra de João Correa não pode mais ser curtida por ninguém. Um admirável brasileiro, que deveria estar no panteão dos grandes homens que fizeram a nossa história, tem apenas um busto na pracinha do centro de Canela."